quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

é que esse amor a bagunçou inteira..

Para M.C.que me contou uma história tão dolorida.

É que esse amor a bagunçou inteira. Jurou que viria vê-la por três vezes. E a mesa posta, a casa limpa, o vestido bordado. Agora o cheiro das flores que murcharam na chita do vestido lavado. Agora esse café frio, uma das taças intacta, o vinho pela metade. E ela contando sua coleção de esperas, crepúsculos e cartas rabiscadas em guardanapos.

Tentando se reorganizar novamente, rezava pra que tudo voltasse ao seu devido lugar: onde não havia nenhum (falso) entusiasmo e nenhum desses fogos (de artifício). Ela havia chamado de tédio um momento em que , na verdade, seu coração estava em paz.

É que esse amor a bagunçou inteira. E a louça suja de um prato só. E a angústia dura de um parto só. E toda a ternura, como havia lido em Drummond, toda essa ternura inútil, desaproveitada.

Ela só queria que essa dor tão familiar, lhe fosse estranha. E que alguma coisa lhe fizesse companhia, nem que fosse uma voz do outro lado que considerasse a importância que havia para ela de, pelo menos, ouvir um adeus.
E pedia esperançosa: Deus perdoa por eu ter amado desajeitadamente, quem não me amou de jeito algum.

(Marla de Queiroz)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

requintes de delicadeza.

O peito era maior que o céu aberto.
Parávamos. E sabeis
Que o que contenta mais o peito inquieto
É olhar ao redor como quem vê
E silenciar também como quem ama.

(Hilda Hilst)

Não quero mais ser apenas a mulher fatal, aquela que desatina juízos, desarruma os lençóis e transforma a tua vida num redemoinho doce. Quero ser também a tranqüilidade das tardes sonolentas depois do almoço, a fluidez das horas ociosas. Quero ser canto, colo, aconchego, rotina e abrigo de paredes concretas. E uma ponte para o exterior quando a madrugada inquieta...Quero permanecer mais do que estar, sem me preocupar pra que direção o vento levará teus desassossegos.

Mas, deste caminho que te apresento, faço do convite esta certeza de mãos dadas só no início... Pois há algo que mesmo quem teme , ignora: é possível que a estrada seja engolida: pelas águas, pelo cansaço, pelo desperdício das horas, pelos indícios.

Não acredito mais na idéia de amor romântico, por isso, perdoa se te transformei no homem da minha vida, eu deveria ter deixado que você se tornasse por mérito próprio.

E se percebo que não há garantias é porque nunca as tive: nem nas ausências, nem durante a mais intensa companhia. E destes gritos que abrangem um mar inteiro numa breve manhã ou numa tarde sem carícias, me desvencilho. Quero saber que você existe, que já esteve em mim e comigo, mas que é tão livre para ser quanto eu sou. E que esteja e seja matéria ou substância etérea sem me machucar com tua existência sólida. Não quero que nada sobre você me pese nos dias e nem que a saudade me faça acordar com o olhar mais triste que já tive. Quero saber-te pleno e estar feliz por isto, seja lá qual for o motivo. Quero saber-me plena e casada com o amor, mesmo que você já não seja mais o foco.Há muito alvoroço de mar em mim, deixa que eu viva e escreva por esta Natureza.(Nasci explícita para que ningúem me guarde num segredo.)Sou permanência e transitoriedade. Sou reminiscência e novidade.E sei e sinto e vejo mais do que gostaria.

E, se isto me orienta, também me angustia.

Você sabe, às vezes me falta destreza.

E para que não seja sempre assim tão ácido,

Não sejamos nós,

Antes, sejamos laços:

Desses que se atam e desatam com delicadeza.

*

*

Marla de Queiroz

estou adiando..

"Estou adiando. Sei que tudo o que estou falando é só pra adiar o momento em que terei que começar a dizer, sabendo que nada mais me resta a dizer. Estou adiando o meu silêncio. A vida toda adiei o silêncio? mas agora, por desprezo pela palavra, talvez eu possa começar a falar."

(Clarice Lispector)