quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Como a gente se perde! A linguagem que o meu sangue entende — é esta. A comida que o meu estômago deseja — é esta. O chão que os meus pés sabem pisar — é este. E, contudo, eu não sou já daqui. Pareço uma destas árvores que se transplantam, que têm má saúde no país novo, mas que morrem se voltam à terra natal.
Miguel Torga

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Um sopro de vida; Clarice Lispector

"Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam."

"O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então — para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado. E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje."

Saber desistir. Abandonar ou não abandonar — esta é muitas vezes a questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensinada a ninguém. E está longe de ser rara a situação angustiosa em que devo decidir se há algum sentido em prosseguir jogando. Serei capaz de abandonar nobremente? ou sou daqueles que prosseguem teimosamente
esperando que aconteça alguma coisa? como, digamos, o próprio fim do mundo? ou seja lá o que for, como a minha morte súbita, hipótese que tornaria supérflua a minha desistência?

Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto — e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras — quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo.


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

"O meu amanhecer vai ser de noite"

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
As palavras me escondem sem cuidado.
Aonde eu não estou as palavras me acham.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.
— 
- O livro sobre nada; Manoel de Barros.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Merci à la vie.

Merci à la vie qui m'a tant donné.
Elle m'a donné deux yeux et quand je les ouvre
Je distingue parfaitement le noir du blanc
Et là-haut dans le ciel, un fond étoilé
Et parmi les multitudes, l'homme que j'aime.

Merci à la vie qui m'a tant donné.
Elle m'a donné d'entendre, oreilles grandes ouvertes
Enregistrer nuit et jour grillons et canaris,
Marteaux, turbines, aboiements, orages,
Et la voix si tendre de mon bien-aimé.

Merci à la vie qui m'a tant donné.
Elle m'a donné la voix et des lettres
Avec lesquelles je pense les mots, et je dis
Mère, ami, frère, lumière qui éclaire
Le chemin de l'âme que j'aime.

Merci à la vie qui m'a tant donné.
Elle m'a donné de marcher de mes pieds fatigués
Et j'ai ainsi parcouru villes et marécages,
Plages et déserts, montagnes et plaines
Jusqu'à ta maison, ta rue, ta cour.

Merci à la vie qui m'a tant donné.
Elle m'a donné un coeur qui devient débordant
Quand je vois le fruit du cerveau humain ;
Quand je vois la distance qu'il y a entre le bien et le mal
Quand je vois le fond de tes yeux clairs.

Merci à la vie qui m'a tant donné.
Elle m'a donné le rire, elle m'a donné les pleurs.
Ainsi, je distingue le bonheur du désespoir
Ces deux éléments qui forment mon chant,
Et votre chant qui est le même chant,
Et le chant de tous, qui est encore mon chant.

domingo, 23 de março de 2014

E Eis..

"E eis que em breve nos separaremos
E a verdade espantada é que eu sempre estive só de ti e não sabia
Eu agora sei, eu sou só
Eu e minha liberdade que não sei usar
Mas, eu assumo a minha solidão
Sou só, e tenho que viver uma certa glória íntima e silenciosa
Guardo teu nome em segredo
Preciso de segredos para viver
E eis que depois de uma tarde de quem sou eu
E de acordar a uma hora da madrugada em desespero
Eis que as três horas da madrugada, acordei e me encontrei
Fui ao encontro de mim, calma, alegre, plenitude sem fulminação
Simplesmente eu sou eu, e você é você
É lindo, é vasto, vai durar
Eu não sei muito bem o que vou fazer em seguida
Mas, por enquanto, olha pra mim e me ama
Não, tu olhas pra ti e te amas
É o que está certo
Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca
E tudo isso ganhei ao deixar de te amar
Escuta! Eu te deixo ser… Deixa-me ser!"

- Clarice Lispector; E eis.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Falar de história de vida é pelo menos pressupor - e isso não é pouco - que a vida é uma história e que, como no título de Maupassant, "Uma vida", uma vida é inseparavelmente o conjunto dos acontecimentos de urna existência individual concebida como uma história e o relato dessa história. É exatamente o que diz o senso comum, isto é, a linguagem simples, que descreve a vida como um caminho, uma estrada, urna carreira, com suas encruzilhadas (Hércules entre o vicio e a virtude), seus ardis, até mesmo suas emboscadas (Jules Romains fala das "sucessivas emboscadas dos concursos e dos exames"), ou como um
encaminhamento, isto é, um caminho que percorremos e que deve ser percorrido, um trajeto, uma corrida, um cursus, uma passagem, uma viagem, um percurso orientado, um deslocamento linear, unidirecional (a
"mobilidade"), que tem um começo ("uma estréia na vida"), etapas e um fim, no duplo sentido, de término e de finalidade ("ele fará seu caminho" significa ele terá êxito, fará uma bela carreira), um fim da história. Isto
é aceitar tacitamente a filosofia da história no sentido de sucessão de acontecimentos históricos, Geschichte,que está implícita numa filosofia da história no sentido de relato histórico, Historie, em suma, numa teoria do relato, relato de historiador ou romancista, indiscerníveis sob esse aspecto, notadamente biografia ou autobiografia.

- Pierre Bordieu,

quarta-feira, 5 de março de 2014

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

O que acontece quando você vive no exterior

O texto a seguir é uma tradução de “What happens when you live abroad“, da Chelsea Fagan. 
Uma característica muito confiável de pessoas que vivem no exterior é encontrá-los amontoados em bares e restaurantes, falando não apenas sobre a sua terra natal, mas sobre a experiência de sair. E por incrível que pareça, esses grupos de expatriados não são necessariamente todos dos mesmos países de origem, muitas vezes, a mera experiência de mudança de local e cultura é suficiente para conectá-los e construir as bases de uma amizade. Eu conhecia uma quantidade razoável de expatriados – de diferentes períodos de estadia – nos Estados Unidos, e é reconfortante ver que aqui na Europa, os bares de “estrangeiros” são tão predominantes e preenchidos com a mesma vibração quente e nostálgica.
Mas uma coisa que, sem dúvida, existe entre todos nós, algo que permanece não-dito em todos os nossos encontros, é o medo. Há um medo palpável em viver em um novo país, e embora seja mais agudo nos primeiros meses, até mesmo anos, da sua estadia, nunca evapora completamente ao longo do tempo. Ele simplesmente muda. A ansiedade que já foi concentrada em como você vai fazer novos amigos, se ajustar e dominar as nuances da linguagem tornou-se a questão repetida “O que eu estou perdendo?”. Conforme você se estabelece em sua nova vida e novo país, conforme o tempo passa e se torna menos uma questão de há quanto tempo você está aqui e mais uma de há quanto tempo você se foi, você percebe que a vida em casa seguiu sem você. As pessoas cresceram, mudaram, se casaram, se tornaram pessoas completamente diferentes – e você também.
É difícil negar que o ato de viver em outro país, em outro idioma, muda você fundamentalmente. Diferentes partes da sua personalidade se destacam, e você assume qualidades, maneirismos e opiniões que definem as novas pessoas ao seu redor. E não há nada de errado nisso, muitas vezes é parte da razão pela qual você partiu, em primeiro lugar. Você queria evoluir, mudar alguma coisa, para colocar-se em uma desconfortável situação nova que iria forçá-lo a entrar numa nova fase de sua vida.
Então, muitos de nós, quando deixamos nossos países de origem, queremos escapar de nós mesmos. Construímos enormes redes de pessoas, bares e cafés, de argumentos e exes e os mesmos cinco lugares de novo e de novo, dos quais sentimos que não podemos nos libertar. Há muitas pontes que foram destruídas, ou amor que se tornou azedo e feio, ou restaurantes em que você comeu tudo no menu pelo menos dez vezes – a única maneira de escapar e tornar a sua ficha limpa é a ir a algum lugar onde ninguém saiba quem você foi, e nem vá perguntar. E, embora seja extremamente refrescante e estimulante sentir que você pode ser quem você quiser ser e vir sem a bagagem do seu passado, você percebe o quanto de “você ” foi mais baseado em localização geográfica do que qualquer outra coisa.
Andar pelas ruas sozinho e jantar em mesas para um – talvez com um livro, talvez não – em que você fica sozinho por horas, dias a fio com nada além de seus próprios pensamentos. Você começa a falar sozinho, perguntando coisas a si mesmo e respondendo-as, e fazendo as atividades do dia com uma lentidão e uma apreciação que você nunca antes sequer tentou. Até ir apenas ao supermercado – estando em um empolgante lugar novo, sozinho, em um novo idioma – é uma atividade emocionante. E ter que começar do zero e reconstruir tudo, ter que reaprender a viver e realizar atividades diárias como uma criança, fundamentalmente lhe altera. Sim, o país e seu povo terão o seu próprio efeito sobre quem você é e o que você pensa, mas poucas coisas são mais profundas do que simplesmente começar de novo com o básico e confiar em si mesmo para construir uma vida de novo. Eu ainda tenho que encontrar uma pessoa que eu não ache que se acalmou com a experiência. Há uma certa quantidade de conforto e confiança que você ganha com você mesmo quando você vai para este lugar novo e começa tudo de novo, e uma noção de que – aconteça o que acontecer no resto da sua vida - você foi capaz de dar esse passo e pousar suavemente pelo menos uma vez.
Mas existem os medos. E sim, a vida continuou sem você. E quanto mais tempo você ficar em seu novo lar, mais profundas essas mudanças se tornarão. Feriados, aniversários, casamentos – cada evento que você perde de repente se torna uma marcação em uma resma de papel sem fim. Um dia, você simplesmente olha para trás e percebe que tanta coisa aconteceu na sua ausência, que tanta coisa mudou. Você acha cada vez mais difícil iniciar conversas com as pessoas que costumavam ser alguns dos seus melhores amigos, e piadas internas se tornam cada vez mais estranhas – você se tornou um estranho. Há aqueles que ficam tanto tempo fora que nunca podem voltar. Todos nós conhecemos o expatriado que está em seu novo lar há 30 anos e que parece ter quase substituído os anos perdidos longe de sua terra natal com total imersão apaixonada em seu novo país. Sim, tecnicamente eles são imigrantes. Tecnicamente a sua certidão de nascimento iria colocá-los em uma parte diferente do mundo. Mas é inegável que qualquer que seja vida que eles deixaram em casa, eles nunca poderiam juntar todos os pedaços. Essa pessoa antiga se foi, e você percebe que a cada dia você se aproxima um pouquinho mais de você mesmo se tornar essa pessoa – mesmo se você não quiser.
Então você olha para sua vida, e os dois países que a seguram, e percebe que agora você é duas pessoas distintas. Por mais que seus países representem e preencham diferentes partes de você e o que você gosta na vida, por mais que você tenha formado laços inquebráveis com pessoas que você ama em ambos os lugares, por mais que você se sinta verdadeiramente em casa em qualquer um, você está dividido em dois. Para o resto de sua vida, ou pelo menos você se sente assim, você vai passar seu tempo em um incômodo anseio pelo outro, e esperar até que você possa voltar por pelo menos algumas semanas e mergulhar de volta à pessoa que você era lá. Leva-se muito tempo para conquistar uma nova vida para si mesmo em algum lugar novo, e isso não pode morrer, simplesmente porque você se moveu ao longo de alguns fusos horários. As pessoas que lhe acolheram no país delas e tornaram-se sua nova família, eles não vão significar menos para você quando você está longe.
Quando você vive no exterior, você percebe que, não importa onde você esteja, você sempre será um expatriado. Sempre haverá uma parte de você que está longe de sua casa e jaz adormecida até que possa respirar e viver com todas as cores de volta ao país onde ela pertence. Viver em um lugar novo é algo belo e emocionante, e pode lhe mostrar que você pode ser quem você quiser – em seus próprios termos. Pode dar-lhe o dom da liberdade, de novos começos, de curiosidade e empolgação. Mas começar de novo, entrar naquele avião, não vem sem um preço. Você não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo e, a partir de agora, você sempre ficará acordado em certas noites e pensará em todas as coisas que você está perdendo em casa.

domingo, 11 de agosto de 2013

Teresinha e Gabriela

Gabriela menina, Gabriela levada. 
Ô, menina encapetada… 
Gabriela sapeca: 
– Menina, como é que você se chama? 
– Eu não me chamo, não, os outros é que me chamam Gabriela. 
Gabriela serelepe: 
– Menina, para onde vai essa rua? 
– A rua não vai, não, a gente é que vai nela. 
Gabriela na escola: 
– Gabriela, quem foi que descobriu o Brasil? 
– Ah, professora, isso é fácil, eu só queria saber quem foi que 
cobriu. 
Gabriela não deixava a professora em paz: 
– Professora, céu da boca tem estrelas? 
– Professora, barriga da perna tem umbigo? 
– Professora, pé de alface tem calos? 
Gabriela era quem inventava as brincadeiras: 
– Vamos brincar de amarelinha? 
Todo mundo ia. 
– Vamos brincar de pegador? 
Todos concordavam. 
Todos queriam brincar com Gabriela. 
Foi aí que mudou, para a mesma rua da Gabriela, a Teresinha. 
Teresinha loirinha, bonitinha, arrumadinha. 
Teresinha estudiosa, vestida de cor-de-rosa. 
Teresinha. 
Que belezinha… 
Os amigos vinham contar a Gabriela: 
– Teresinha tem um vestido com rendinha. 
– Teresinha tem uma caixinha de música. 
– Teresinha tem cachos no cabelo. 
Gabriela já estava enciumada: 
– Grande coisa, cachos! Bananeira também tem cachos! 
Gabriela não queria nem ver Teresinha: 
– Menina enjoada, não sabe correr, não suja o vestido, só vive 
estudando. Deus me livre! 
– Mas ela é boazinha — os meninos diziam. 
– Boazinha, nada! Ela é sonsa. 
– Mas você nunca falou com ela, Gabriela. 
– Não interessa. Não falei e não gostei, pronto! 
Mas Gabriela já estava impressionada, de tanto que falavam da Teresinha. 
E Gabriela começou a se olhar no espelho e achar o seu cabelo muito sem 
graça: 
– Mamãe, eu queria fazer cachos nos cabelos. 
– Mamãe, eu queria um vestido cor-de-rosa. 
– Mamãe, eu queria uma caixinha de música. 
E Gabriela começou a se modificar. 
Na escola, no recreio, Gabriela não pulava corda e nem brincava de 
esconde-esconde. 
Ficava sentadinha,quietinha, fazendo tricô. 
De tarde, Gabriela não ia mais brincar na rua para não sujar o vestido. 
E, à noite, muito em segredo, Gabriela enchia a cabeça de papelotes para 
encrespar os cabelos. 
Os amigos vinham chamar Gabriela: 
– Gabriela, vamos andar de bicicleta? 
– Agora eu não posso — respondia Gabriela. — Preciso ajudar a mamãe. 
A mamãe de Gabriela estranhava: 
– Que é isso, menina? Você não tem nada para fazer agora. 
E Gabriela, com ares de gente grande, respondia: 
– Eu já estou crescida para essas brincadeiras… 
E Teresinha? 
O que é que estava acontecendo com Teresinha? 
Teresinha só ouvia falar de Gabriela: 
– Gabriela é que sabe pular corda. 
– Gabriela usa rabo-de-cavalo para o cabelo não atrapalhar. 
– Gabriela só usa calças compridas. 
Teresinha respondia com pouco-caso: 
– Que menina mais sem modos! Deus me livre… 
Mas, quando as crianças saíam, Teresinha pedia: 
– Mamãe, eu quero umas calças compridas. 
E, no fundo do quintal, Teresinha treinava, pulando corda e amarelinha, 
para ir brincar na rua, como Gabriela. 
E, na primeira vez que as duas se encontraram, a turma nem queria 
acreditar. 
Gabriela, fazendo pose de moça, cabelos cacheados, sapatos de 
pulserinha, vestido todo bordado. 
Gabriela empurrando o carrinho da boneca, comportadíssima. 
Teresinha pulando sela, assoviando, levadíssima. 
As duas se olharam, no começo, desconfiadíssimas. 
Depois, começaram a rir porque estavam mesmo muito engraçadas. 
Agora, Teresinha e Gabriela são grandes amigas. 
Cada uma aprendeu muito com a outra. 
Gabriela sabe a lição de história do Brasil, embora seja ainda a campeã 
de bolinha de gude. 
E teresinha, embora seja ainda uma boa aluna na escola, já sabia andar 
de bicicleta, pular amarelinha, e até já estava aprendendo a fazer suas 
gracinhas. 
Ontem, quando a professora perguntou a Teresinha: 
– Minha filha, o que você vai ser quando crescer? 
Teresinha teve dúvidas: 
– Vou ser grande, ué!

( ROCHA,Ruth. In; Marcelo , marmelo, martelo e outras histórias ( fragmentos ) . Rio de janeiro : Salamandra . 1976)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Carlos Drummond de Andrade - Eterno

Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata!

Fácil é ditar regras.
Difícil é segui-las. Ter a noção exata de nossas próprias vidas ao invés de ter a noção da vida dos outros.

Fácil é perguntar o que se deseja saber.
Difícil é estar preparado para escutar esta resposta. Ou querer entender a resposta.

Fácil é dar um beijo.
Difícil é entregar a alma sinceramente, por inteiro.

Fácil é sair com várias pessoas ao longo da vida.
Difícil é entender que pouquíssimas delas vão te aceitar como você é e te fazer feliz por inteiro.

Fácil é ocupar um lugar na agenda telefônica.
Difícil é ocupar o coração de alguém. Saber que se é realmente amado.

Fácil é sonhar todas as noites.
Difícil é lutar por um sonho.

Fácil é ver o que queremos enxergar.
Difícil é saber que nos iludimos com o que achávamos ter visto. Admitir que nos deixamos levar, mais uma vez, isso é difícil.

Fácil é dizer "oi" ou "como vai?".
Difícil é dizer "adeus", principalmente quando somos culpados pela partida de alguém de nossas vidas.

Fácil é abraçar, apertar as mãos, beijar de olhos fechados.
Difícil é sentir a energia que é transmitida. Aquela que toma conta do corpo como uma corrente elétrica quando tocamos a pessoa certa.

Fácil é julgar pessoas que estão sendo expostas pelas circunstâncias.
Difícil é encontrar e refletir sobre os seus erros, ou tentar fazer diferente algo que fez muito errado.

Fácil é ser colega, fazer companhia a alguém. Dizer o que se deseja ouvir.
Difícil é ser amigo para todas as horas e dizer sempre a verdade quando preciso e com confiança no que diz.

Fácil é analisar a situação alheia e poder aconselhar sobre esta situação.
Difícil é vivenciar esta situação e saber o que fazer, ou ter coragem para fazer.

Fácil é demonstrar raiva e impaciência quando algo o deixa irritado.
Difícil é expressar o seu amor a alguém que realmente te conhece, te respeita e te entende. E é assim que perdemos pessoas especiais.

Fácil é querer ser amado.
Difícil é amar completamente só. Amar de verdade, sem ter medo de viver, sem ter medo do depois. Amar é se entregar e aprender a dar valor a quem te ama.

Falar é completamente fácil, quando se tem palavras em mente que expressem sua opinião.
Difícil é expressar por gestos e atitudes o que realmente queremos dizer, o quanto queremos dizer, antes que a pessoa se vá.

Carlos Drumond de Andrade