terça-feira, 28 de setembro de 2010

Itinerário;

De repente, estou só. Dentro do parque, dentro do bairro, dentro da cidade, dentro do estado, dentro do país, dentro do continente, dentro do hemisfério, do planeta, do sistema solar, da galáxia - dentro do universo, eu estou só. De repente. Com a mesma intensidade estou em mim. Dentro de mim e ao mesmo tempo de outras coisas, numa seqüência infinita que poderia me fazer sentir grão de areia. Mas estar dentro de mim é muito vasto. Minhas paredes se dissolvem. Não as vejo mais, e por um instante meu pensamento se expande, rompendo limites num percurso desenfreado. Nesse rápido espraiar, meu ser anexa a si as coisas externas. O parque, as árvores., o sol, as gentes deixam de ter existência privada e, dentro de mim, estão sob meu domínio. Como membros de meu corpo, ou pensamentos já feitos ou palavras já formuladas -eles se aninham em mim, fazendo parte do meu ser. Me torno em parque, em árvore, sol, em gentes. O processo é tão breve que sequer tenho tempo de regozijar-me com ele. Porque subitamente tudo volta.
E sou apenas um homem no parque - reduzido somente a minha condição de homem no parque. Espio para fora de mim e vejo as coisas que não são mais minhas. As árvores debaixo das quais estou, esta folha que há pouco deslizou pelo meu chapéu, escorregou por ombro, atingindo a mão onde a esmago, esta gente para quem sou um homem no parque. Na minha mão o contato da folha ferida é áspero. Mas não fere. Frente a meus olhos: hirta, seca, amarelada, é uma folha do inverno. As ramificações se expandem em mil caminhos até as bordas, na tentativa já inútil de levar a seiva aos pontos mais recuados, e ela é uma coisa morta. O pequeno talo vibra entre meus dedos como um ser vivo e agonizante num último espasmo. Olho as pontas reviradas e, num gesto, torno a esmagá-la. Já não é folha, já não é nada -somente um punhado de poeira que escorrega incômoda manga adentro do casaco. No entanto, não sou um assassino: sou um homem no parque! quase grito para que as outras pessoas escutem e olhem para mim e vejam como sou inteiramente normal trivial banal e até vulgar dentro deste terno escuro, antiquado -preciso que tomem consciência do meu ser e preciso eu mesmo tomar consciência do que sou e do que significo nesta brecha de tempo. Por isso baixo os olhos e, subindo-os desde o bico dos sapatos, vistorio todo o conjunto que forma o meu ser em exposição. Calças, casaco, chapéu eu sou um homem no parque! Novamente quase grito porque a realidade de repente oscila, ameaçando quebrar-se em fatias que ferem. Apoiado em minha segurança, que se revela precária, eu luto.
E eis que a luta finda. Eu cedo. Novamente as coisas se dissolvem e torno a escorregar para dentro de mim. Mas estar em mim já não é vasto. Minha extensão reduziu-se a este círculo acinzentado que é meu pensamento. Minha extensão é tão mínima que sufoco dentro dela. Tudo se resume a esta extensão. Não há mais nada fora de mim. Impossível a fuga. Meus membros se encolhem como um tecido ordinário, recém-levado, estendido ao sol. Tudo se comprime em torno de mim. Este círculo acinzentado apertando cada vez mais, repleto de arestas, de pontas aguçadas. Neste círculo estou em rotação. Meu ser vai girando, girando num lento corrupio, num movimento que é quase dança, quase ciranda. As arestas ferem leve, com jeito de carícia, as pontas apenas afagam enquanto o pensamento se esquiva, na esperança de sair ileso. Então tudo cessa.
E volta o parque com suas gentes passando, com aquela série de coisas que constituem o ser de um parque. Acendo um cigarro, minha mão treme, devolvida à segurança que em relação às coisas de fora novamente se revela eficiente. Nas minhas calças, o pó da folha é a lembrança do crime sem júri nem juiz, nem poluição. A meus pés, o trabalho das formigas é intenso neste outono quase inverno, repleto de folhas caídas. A longa fila se encaminha lenta, desviando-se de meus sapatos, folhas equilibradas sobre as cabeças, ultrapassando os pés do homem a meu lado, as pernas vagamente tortas daquela mulher mais adiante, as meias azuis daquela adolescente. Até o formigueiro, onde as despensas devem estar abarrotadas. Mas as cigarras já não cantam.
Tudo volta. Procuro retomar a meu último pensamento: tinha relação com infância e livro, eu sei. E busco. Por entre essa infinidade de formas, de signos desfeitos com que são construídos os pensamentos por entre esse amontoado de lembranças feitas de imagem incompletas como retratos rasgados; por entre essas idéias a que faltam braços, pernas, cabeças por entre os retalhos dessa caótica colcha de que é tecido o cérebro de um homem no parque, eu busco. Sem encontrar. A segurança das coisas fáceis e simples desliza entre meus dedos recusando fixar-se. E há o cigarro: essa tonalidade azulada é apenas a fumaça subindo em lentas espirais, cada vez mais densa, tomando conta de mim, eu sei, deve ser, porque as coisas não sendo o que são outra vez me jogarão num mundo de procuras e espantos.
E de novo estou em mim. Ainda preso nas engrenagens do círculo. Que desta vez não ferem. Dentro da minha pequena extensão me são permitido o movimento e o investigar. Movimento e investigar vãos, porque é tudo tão ínfimo que nem há mistérios pelos cantos. Não há perspectiva na espera de serem pressentidas. Não há sequer vértices nesta superfície despida de arestas: só a leve chama, em aceno trêmulo por entre o vazio. Mas eu não quero. Seria preciso abdicar de todas as minhas verdades essas estrutura das lentamente, dia após dia, quase minuto a minuto, suavizando os contornos da realidade quando esta se torna áspera. Seria preciso abdicar de meu ser cotidiano, construído em longo labor. Seria preciso abdicar de minha segurança, e eu a acumulei em paciência em tédio, mas a fiz forte, e se agora periclita é porque todos nós temos o nosso momento de queda. E este é o meu.
No vácuo de mim eu me despenco. Porque seria preciso também abdicar de mim mesmo para novamente reconstruir-me. Tornar a escolher os gestos, as palavras, em cada momento decidir qual dos meus seus assumir. Já esfacelei meu ser, já escolhi as porções que me são convenientes, esquecendo deliberado as outras. E são elas -serão elas? -que agora se movimentam revoltadas, pedindo passagem em gritos mudos, na ânsia de transcender limites, violentar fronteiras, arrebentando para a manhã de sol. O tremular da chama é um aceno, convite para chegar à verdade última e íntima de cada coisa.
Não quero. Não posso restar nu, despojado de mim mesmo. Não posso recomeçar porque tudo soaria falso e inútil. As minhas verdades me bastam, mesmo sendo mentiras. Não é mais tempo de reconstruir.
Em luta, meu ser se parte em dois. Um que foge, outro que aceita. O que aceita diz: não. Eu não quero pensar no que virá: quero pensar no que é. Agora. No que está sendo. Pensar no que ainda não veio é fugir, buscar apoio em coisas externas a mim, de cuja consistência não posso duvidar porque não a conheço. Pensar no que está sendo, ou antes, não, não pensar, mas enfrentar e penetrar no que está sendo é coragem. Pensar é ainda fuga: aprender subjetivamente a realidade de maneira a não assustar. Entrar nela significa viver .
Sôfrego, torno a anexar a mim esse monólogo rebelde, essa aceitação ingênua de quem não sabe que viver é, constantemente, construir, não derrubar. De quem não sabe que esse prolongado construir implica em erros, e saber viver implica em não valorizar esses erros, ou suavizá-los, distorcê-los ou mesmo eliminá-los para que o restante da construção não seja abalado. Basta uma pausa, um pensamento mais prolongado para que tudo caia por terra. Recomeçar é doloroso. Faz-se necessário investigar novas verdades, adequar novos valores e conceitos. Não cabe reconstruir duas vezes a mesma vida numa única existência. Por isso me esquivo, deslizo por entre as chamas do pequeno fogo, porque elas queimam. queimar também destrói.
Perplexidade, recusa e medo feitos em palavra fazem tudo recuar. O círculo abandona meus membros, a chama se apaga. A luta vai-se tomando lassidão. Revolta sufocada são rumores que abafo lentamente, com a delicadeza monstruosa de quem estrangula uma criança dormindo.
Eis que começo a voltar. Não de uma galáxia distante, de outro planeta, sequer de uma cidade ou um parque. De mim, volto. Em tomo as árvores principiam a ganhar consistência, negativo aos poucos revelado, água escorrendo da capa de obscuridade. São verdes, as árvores. Seus troncos nascem da terra, se alongam em braços recobertos pelas folhas que o outono amarelou. Troncos rugosos, feito de pequenos pedaços ásperos, de cor indefinida. Mas elas são verdes. Todos as vêem verdes, mesmo agora, com as folhas amareladas, com a cor-sem-cor de seus caules. O céu azul. Mesmo sendo cinzento ou incolor o ar que o faz. É preciso dar cor e forma às coisas porque desnudas elas apavoram.
Respiro. Fecho os olhos. O ar penetra as narinas abrindo caminhos pelo corpo num automatismo que não terá fim enquanto eu viver .
Estou de volta. Minhas mãos sobre os joelhos, os joelhos cobertos pelo pano preto das calças, o pano afunilando até os pés metidos em meias listradas de azul e branco, dentro do marrom dos sapatos. Tudo me diz que estou de volta. Aceito. Suspenso no meu pulso, o tempo tiquetaqueia no ritmo do relógio. Onze horas. Preciso ir andando. Há mulher há filhos há trabalho há a prestação da televisão que passará um bangue-bangue legal e pensando como qualquer homem neste ou noutro hoje à noite e eu gosto de bangue-bangue como um menino gosta de sorvete metido no meu pijama de bolinhas nas minhas chinelas às quais se amoldam meus pés como dentro de uma fôrma e a minha poltrona funda e o cachimbo e o jornal do lado. Tudo tão simples. Já vi mil vezes cenas iguais em filmes e livros e revistas. Tanto e tanto que duvido delas. Mas dúvida faz escorregar. E no fundo, depois do longo deslizar, no fundo é Úmido e frio, apesar da chama. Faz-se necessário testar, apalpar as massas que recusam definições. Faz-se necessário avançar. Mas tudo impede o avanço. E dói.
Não.
E eis então que caminho para rua, chamo um táxi, entro nele. Eis aí que olho pela janela, vejo o parque, o banco, as pipocas que não comprei. Eis assim que encosto a cabeça no banco, apanho um cigarro e trago longamente. Eis depois que solto a fumaça de um jeito que não sei se é sopro ou suspiro. Eis.

(Caio Fernando Abreu, Itinerário in "Inventário do Ir-remediável")

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A Vera Antoun

London, 19/10/73

"Fui o único culpado da nossa separação
Por isso tenho amargado, margando na solidão
Mas tenho os olhos tranqüilos, de quem sabe seu preço,
Vou navegando, vou temperando,
Pra cima a coisa toda muda.
Pra baixo todo santo ajuda."

Outro dia senti frio na alma. Foi no Holland Park, pisando num enorme
tapete de folhas douradas. Aí senti o outono, o cinzento se acentuando nas coisas,
as pessoas se virando para dentro — o inverno chegando depressa, um frio de
rachar. Na alma mesmo. As tuas 1.001 cartas cheias de sunshine clareavam um
pouco os dias, as transas. Que te dizer? Que te amo, que te esperarei um dia numa
rodoviária, num aeroporto, que te acredito, que consegues mexer dentro-dentro de
mim? É tão pouco. Não te preocupa. O que acontece é sempre natural — se a
gente tiver que se encontrar, aqui ou na China, a gente se encontra. Penso em você
principalmente como a minha possibilidade de paz — a única que pintou até agora,
“nesta minha vida de retinas fatigadas”. E te espero. E te curto todos os dias. E te
gosto. Muito.
Tô morando, trabalhando, estudando e amando. Esses são os quatro foles da
minha vida, no momento, e sobre cada um deles eu teria milhares de páginas a
preencher. Sei lá, menina, tá tudo tão legal — e um legal tão batalhado, um legal
merecido, de costas e pernas doendo, mas coração tranqüilo. Augusto, Marisa e eu
conseguimos um apartamentinho lindo, num lugar ótimo, no aluguel se foi todo
nosso dinheiro, Augusto começou a trabalhar logo, eu e Marisa ficamos duríssimos.
Foi chato, apanhei uma gripe e alguns grilos — até que esta semana comecei a fazer
limpeza numas casas. O primeiro dia foi terrível: eu tinha medo de não saber fazer
nada, de não entender nada. Não dormi à noite, tive dor de barriga. Aí me
desdobrei, fiz tudo direitinho — o meu inglês aos poucos está começando a fluir e,
se ainda não consigo ter uma conversa, pelo menos já me comunico. Isso me deixa
feliz à beça, eu tava me sentindo meio retardado, meio analfabeto. Fluência agora é
uma questão de tempo.
No meio de tudo isso, pintou uma pessoa. É um menino cubano chamado
Nelson — ele saiu de Cuba aos 11 anos, morou nos Estados Unidos uma porção
de tempo e agora está aqui, estudando dança moderna. É Libra, ascendente Virgem
— eu sou Virgem ascendente Libra. Foi, está sendo, lindo. Sei lá, eu tava me
sentindo muito cansado, muito carente — e me recusava a procurar qualquer
transa. Estava completamente só, há quase seis meses. Eu sabia que ia pintar — eu
vim para Londres porque sabia que aqui ia pintar. E pintou. Foi a maior força
possível — me recuperei completamente do complexo de inferioridade e de
abandono, senti outra vez aquelas coisas, lembrei de todas as letras do Roberto
Carlos — fiquei, enfim, meio cafona como sempre fico nessas situações, mas agora
já voltei a pisar na terra — tudo fica mais concreto, e eu compreendo melhor.
Dei pulos com o endereço da Sílvia — eu não sabia que ela estava aqui.
Como não tem telefone, escrevi uma carta ontem. Acho que ela vai pintar aqui
neste fim de semana. Vai ser um pouco como rever você, sabe?
Acho que você vai gostar de saber: estou há quase dois meses firme na
macrobiótica. Não é uma dieta rígida porque, trabalhando, não há mesmo
condições. Mas cortei completamente a carne, como arroz integral e muitos
vegetais, chá de Mu — não tomo refrigerantes nem café. Só não consigo cortar o
cigarro. Mas parei também com o haxixe, porque a minha cuca anda ficando meio
pirada ao natural — e eu acho que realmente já passei por tudo isso.
Outra coisa: a vontade de escrever VOLTOU. Não sei se foi o impulso que
o Nelson me deu, ou mesmo Londres — a verdade é que voltou. Só que eu não
consigo escrever à mão — não dá mesmo, uma carta ainda sai, mas um conto não
tem jeito — é primitivo e lento demais. Estou tentando economizar para comprar
uma máquina de escrever — é o meu sonho atual, bem humildezinho como você
vê. Voltei a ver o tarot, depois de deixá-lo descansar por uns dois meses. Parece
que Medéia recuperou os seus poderes. Olha, estou com a sensação de estar
escrevendo uma carta muito besta. Vou parar. Abro à toa o Fernando Pessoa e
peço uma mensagem para ti. Ele manda dizer isto:
“Tuas mãos esguias, um pouco pálidas, um pouco minhas,
Estavam naquele dia quietas pelo teu regaço de sentada,
Como e onde a tesoira e o ideal de uma outra.
Cismavas, olhando-me como se eu fosse o espaço.
Recordo para ter o que pensar, sem pensar.
De repente, num meio suspiro, interrompeste o que estavas sendo
Olhaste conscientemente para mim e disseste:
“Tenho pena que todos os dias não sejam assim.”
Podem voltar a ser, quem sabe? Acendo vela, queimo incenso — falo de
você para Augusto e Marisa, lembro Leme, Botafogo, coloco o disco da Gal e fico
ouvindo Tbe archaic lonely blI4es — eu sei não me diga.
Verinha, tudo passa, tudo vai embora — a gente tem que se encontrar. Meu
livro deve sair no Brasil talvez até o fim do ano — eu ganharia + ou - 2.000 com a
publicação — a gente podia usar esse dinheiro para a tua passagem, não é? Mas, sei
lá, não queria que você viesse apenas por mim, entende? Em qualquer
circunstância, eu acho, a experiência Europa é fundamental — desde que não se
corte nenhum processo importante por aí. E pelas minhas cartas suecas você deve
ter percebido que não é absolutamente uma coisa leve. A gente sangra e geme —
mas sai mais vivo, “com a vida dividida pra lá e pra cá”. O que não queria é que
você futuramente talvez me culpasse, entende? Mas acho que é besteira ficar
tentando desvendar o futuro — apesar do tarot e do I Ching. Ao mesmo tempo
gostaria que tomássemos alguma providência REAL sobre a sua vinda. Mande me
dizer o que você pensa de tudo isso — mas pense bem, é uma coisa séria — muito
mais do que a gente pensa quando está aí.
Vou dormir. Amanhã é sábado, tem Portobello. Estou morto de cansaço, e
minha cuca dói de tanto esforço, o dia inteiro, para pensar, falar e entender inglês.
Às vezes, falando ou escrevendo em português, tenho uns brancos — só vem
inglês. Ou acabo apanhando uma antipatia mortal por essa língua ou viro o maior
admirador da face da Terra. Quero sonhar com você, com o sol e o cometa que
vem no fim do ano — eu tô sabendo.
21.10.73 — Domingo. Noite. Televisão ligada: Clark Gable. Homero e
Augusto. Sempre entre pólos que não me agradam: o desbunde dum lado, a
frescura do outro. Fico no meio. Sinto falta de solidão, de silêncio. Estou um
pouco angustiado por causa disso. Consigo manter apenas o quarto razoavelmente
calmo e limpo, com vela acesa e incenso. Mas não tenho tempo para mim. E tudo
demais pela metade, compartilhado. Não sei se agüento muito tempo mais. Tento
conviver — convivo — mas é, quase sempre, uma violação incrível. Tenho
vontade de ter segredos outra vez. Guardo segredos pequenos — as coisas que
penso ou sinto, pequenos acontecimentos que não descrevo à “comunidade”.
Ontem dormi demais, não fui a Portobello encontrar Nelson. Ele me
mandou um pequeno cactus dentro dum vasinho de cerâmica. Fiquei espantado:
nunca tinha recebido um vegetal vivo de presente — e senti pena de não ter ido.
Depois, os telefones ocupados, os desencontros de ontem e hoje. Sunday, bloody
Sunday. E tão difícil me comunicar com ele. Às vezes eu penso em desistir, eu acho
que não agüento essa aprendizagem toda outra vez — fico tentado a desistir. Não
sei bem por que insisto, posso dizer apenas frases feitas sobre isso, mas na verdade
não sei. Na cozinha, lavando pratos, lembro muito de minha mãe — compreendo
tanto mais ela, agora. Compreendo tudo muito mais. Dói e é incômodo. Vontade
de não saber perdoar, de não ser compreensivo tolerante — de não me contentar
com o pouco — “amor malfeito, depressa, fazer a barba e partir”.
O domingo tá acabando — já é tarde — amanhã a gente começa de novo.
Eu me sinto às vezes tão frágil, queria me debruçar em alguém, em alguma coisa.
Alguma segurança. Invento estorinhas para mim mesmo, o tempo todo, me
conformo, me dou força. Mas a sensação de estar sozinho não me larga. Algumas
paranóias, mas nada de grave. O que incomoda é esta fragilidade, essa aceitação,
esse contentar-se com quase nada. Estou todo sensível, as coisas me comovem.
Tenho regressões a estados antigos, às vezes, mas reajo, procuro me manter ligado
às coisas novas que descobri. Mas tudo fica e se sucede — quase nunca dá tempo
de você se orientar, escolher — não gosto de me sentir levado — e aqui não dá
tempo. Muitos grilos agindo, muita dúvida, umas voltas de insegurança. Faz tempo
ando transferindo uma porção de providências — como é que a gente faz pra se
manter sempre alerta? Eu não agüento tanta atividade física e mental.
Quando escrevo pra você é como se escrevesse pra mim mesmo — às vezes
o jeito me escapa, e é então que as cartas ficam parecendo bestas. Tento ler, não
consigo. Uma carta é dificil — imagine um conto. Às vezes odeio ouvir e/ou falar
inglês — coloco uma barreira na cuca e fico surdo-mudo o máximo possível. Não
consigo ser verdadeiro o tempo todo. Mas você me saca, eu sei.
Agora Marisa saiu com Peter — Augusto foi deitar, Homero resolveu dormir
e foi deitar também. Eu fiquei sozinho na sala, com o barulho do relógio e um pote
de flores amarelas.
Vera, esse negócio com o Nelson tá me machucando muito. Eu fiquei uma
porção de tempo tentando ser “legal e maduro”, “uma presença leve e agradável”
— porque eu tô ainda muito inseguro de mim mesmo, e não acreditando
absolutamente que alguém possa me curtir bem assim como eu sou. Eu não tenho
quase experiência dessas transações, me enrolo todo, faço tudo errado — acabo me
sentindo confuso. Tudo isso é tão íntimo, e eu já estou tão desacostumado de me
contar inteiramente a alguém, tão desacreditando na capacidade de compreensão
do outro, sei lá, não é nada disso, sabe? Conviver é difícil — as pessoas são dificeis
— viver é dificil paca. Estar transando com alguém sempre me funde um pouco —
eu fico muito pobre, acho, muito carente, e muito rico de outras coisas. Queria
botar um tarot pra mim, mas os guris estão no quarto, dormindo.
Ontem à noite fui a um meeting do gay liberation. Grotesco.
Sabe o que eu sinto? Tem duas coisas me puxando, dois tipos de vida — e
eu não quero nenhum deles. Quero um terceiro, o meu. Que ninguém tá curtindo.
A gente tem uma porção de amigos brasileiros, todos legais, mas nenhum
realmente próximo, é estranho. E eu não tô querendo viver como eles vivem —
não tô conseguindo viver como eu gostaria — e não tenho coragem de ficar
sozinho e tentar, você me entende? Acho que não. Eu vou levando, tenho horas de
soluções drásticas, vou levando. Mas não sei até quando. Mesmo Nelson, que podia
ter uma certa importância nesse sentido, de impulsionar uma escolha — ou pelo
menos dar força — mesmo ele, consegue não ter peso nenhum, não interferir, não
modificar nada. E eu fico muito comigo mesmo nisso tudo — cada vez mais
sufocado, mais necessitado que pinte um VERDADEIRO ENCONTRO com
outra pessoa, seja em que termos for. Parece que ou eu ou os outros não somos
mais tão disponíveis. Será que estou fechando, perdendo a curiosidade? Eu não sei.
Vou dormir. Amanhã te escrevo mais um pouco. Sílvia não apareceu. Eu tava
esperando me entender um pouco com ela.


23.10.73

Cansado. Trabalhando o dia inteiro na casa de uma grega. Marisa chegou da
rua com dois Ministers, milagrosamente descolados com uma brasileira encontrada
ao acaso. Caminhei horas na chuva procurando Nelson. Não encontrei. Ele não
telefonou. Resultado: acho que vou mesmo alugar uma máquina de escrever, não
dá mesmo pra agüentar. Não fui à escola, não fui à agência pedir emprego para
amanhã. Tem um verso de Camões assim: “Este amor ledo e cego que a tristeza
não deixa durar muito”. Pois é. Me perco nos metrôs, sinto dor nas pernas. A força
é chegar em casa, tomar um banho e um chá, encontrar Augusto. Mas tudo bem,
tudo bem, tudo bem. Amanhã ninguém. “Tô cansado e você também”. Quero ir
para Barreira, mas quero ver o mundo antes. Preciso machucar um pouco mais
meu coração, doer um pouco mais meu corpo, fatigar meus olhos, leio Rimbaud e
Cesar Vallejo, um peruano que morreu em Paris, com aguaceiro.
Odeio amar, não é engraçado? Amanhã tento de novo. Amar só é bom se
doer. Parou de chover. Não sei qual é o Deus padroeiro das cartas — mas de
qualquer maneira a noite de hoje foi dedicada a ele. Hoje eu queria alguém que me
dissesse que eu não precisava me preocupar — como no Last Picture Show — um
ombro, uma mão. Desculpe tanta sede, tanta insatisfação. Amanhã, amanhã
recomeço.
Te espero, te gosto, te beijo
Caio