domingo, 26 de junho de 2011

Cada contato meu com alguma pessoa representava uma perda enorme de energia vital:
eu saía esgotado, confuso, com dor de cabeça e principalmente, com dor por não poder fazer nada pelo desespero alheio. A minha própria miséria aumentava. Foi aí que a solidão deixou de ser involuntária para se transformar em escolha. E foi bom, está sendo bom. Passo o dia lendo, ouvindo música, vendo velhos filmes na televisão,
de vez em quando vou ao cinema ou saio para passear na beira do rio que passa atrás do edifício. Fico lá sentado numa pedra,fumando e pensando nas pessoas que perdi,senão em afeto, pelo menos em proximidade física.

(Caio F, a Vera Antoun)

sábado, 18 de junho de 2011

"Às vezes me lembro dele, sem rancor, sem saudade, sem tristeza. Sem nenhum sentimento especial a não ser a certeza de que, afinal, o tempo passou. Nunca mais o vi, depois que foi embora. Nunca nos escrevemos. Não havia mesmo o que dizer, ou havia? Ah, como não sei responder as minhas próprias perguntas! É possível que, no fundo, sempre restem algumas coisas para serem ditas. É possível também que o afastamento total só aconteça quando não mais restam essas coisas e a gente continua a buscar, a investigar — e principalmente a fingir. Fingir que encontra. Acho que, se tornasse a vê-lo, custaria a reconhecê-lo."



Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Porto Alegre, 14 de junho de 1970.

Hildinha querida,

recebi seu bilhete magoado com as fotografias (lindas: meu
eu-Narciso teve orgasmo). Escrevi há pouco tempo uma longa carta, comentando o
Fluxo-Floema, creio que não recebeste — caso isso tenha acontecido, repito que
gostei muito. A estória do desastre com o Dante me preocupou bastante — não
entendo por que ele não pediu a alguém que passasse um telegrama para cá,
avisando, eu teria ido de ônibus até Caxias. Deve ter sido tristíssimo ficar
simplesmente sozinho numa cidade estranha e, o que é pior, num hospital. Mas o
importante é que ele já se recuperou bem. Diga a ele que os meus pais gostaram
muito dele, até mesmo o meu pai, que é a própria ostra de tão fechado, chegou a
dizer que era o primeiro amigo meu que ele gostava. Minha tia e minha mãe
acharam ele o homem mais bonito que elas já viram; e meu irmãozinho gostou
porque “ele parece o Bufalo Bill”. Elogios aos potes.
Ana Lúcia está aqui, com Medéia. Conversei rapidamente com ela depois do
espetáculo, depois não tive mais tempo de aparecer: ela não está muito bem, meio
de fossa, falando em largar o teatro. Não gostei do espetáculo — foi todo feito em
função de Cleide Yáconis, que é muito boa, embora não excepcional. O coro é
fraquíssimo, os atores homens idem. Soube pela Ana da morte de dona Bedecilda:
outro golpe para você.
Não tenho escrito com mais freqüência porque não tenho tempo: passo a
manhã inteira na faculdade, a noite no curso de arte dramática, à tarde preciso
estudar (estamos em exames), escrever, filmar, fazer montes e montes de coisas.
Ando muito esgotado, durmo só umas cinco horas por noite (logo eu, que se
pudesse dormia umas 20), andei também ruim do coração, meu ritmo cardíaco
estava a mais de 200 pulsações por minuto, precisei fazer um tratamento, não
posso fazer esforço, nem tomar álcool, estou proibido de fumar mas não ligo.
Algumas brigas terríveis em casa: andei fazendo umas experiências com mescalina,
meus pais descobriram, foi aquele forró. Ando deprimido, agressivo, cansado —
perdi uns cinco quilos: pareço um fantasma, tenho insônia e pesadelos horrendos,
idéias negras durante a noite. Hildinha, se você soubesse como ando escuro, como
ando perdido, como me distanciei de mim e das coisas em que acreditava
: tenho
participado de festas louquíssimas, na base da maconha, da nudez, jogo da verdade,
bacanais, surubas. Por favor, queria tanto que me compreendesses. Ando muito
sozinho, nessas festas se reúnem artistas plásticos, atores, atrizes, escritores —
todos jovens, perdidos, desesperados — é uma coisa terrível. Chega a ser
comovente a maneira errada como eles buscam a pureza, como eles tentam se
convencer que os bacanais são a forma mais absoluta de comunicação: finjo o
tempo todo, rio, sou alegre, dispersivo, com aquele brilho superficial e ridículo. E
em cada fim de noite me sinto um lixo. Há tempos estou vivendo uma estória-deamor-
impossível que rebenta a saúde: sei que não dá pé de jeito nenhum e não
consigo me libertar, esquecer — estou completamente fixado nessa pessoa, vivo
todas as horas do dia em função de encontrá-la, à noite. E insuportável. Sei que
estou me autodestruindo, mas isso já não me assusta: penso se não será melhor
afundar, afundar até acabar numa clínica. A juventude de Porto Alegre é uma coisa
terrível: 90% de viciados em tóxicos, todos fugindo de si, das máquinas, do fazeralguma-
coisa. Acho que quem está de fora não pode condenar, condenar
simplesmente é desprezível — é preciso compreender. Existe uma sede de amor
impressionante. Estou sendo muito honesto ao te contar essas coisas, poderia
facilmente escondê-las: sei que me arrisco a te chocar, te ferir, te agredir. Mas eu
nunca quis ser gostado por aquilo que não sou ou aparento ser. Não vejo saída,
Hildinha, sinto que cada vez mais tudo se fecha. Também não adianta pedir ajuda a
ninguém, ninguém pode dar. Talvez isso passe, não sei quando, talvez seja só uma
fase, das mais dificeis que atravessei, mas até passar estarei me desgastando, me
consumindo. Tenho chegado a extremos que não me julgava capaz. E como isso
dói.

A antologia de contos foi lançada (estou mandando um exemplar) com
muita badalação. Está vendendo bem. Vivi a experiência de uma tarde de
autógrafos: me senti tolhido, constrangido, inibido. A imprensa anda me badalando
muito. Mas descobri finalmente como tudo isso quer dizer pouco: o bom no
escrever é o momento da criação, da vibração, da comunicação com o
incognoscível que nos dita as coisas a serem escritas — o resto é lixo. A inveja é
um fato: certas pessoas têm me agredido muito, na faculdade, na rua, geralmente
intelectuais no mau sentido, frustrados e medíocres. Tenho horror desses
rebucetes, rodinhas e frescuras literárias: procuro ficar na minha, sempre. Digo a
todos os repórteres que não me sinto um escritor: que sou só um ser humano
procurando um jeito de viver. E que talvez esse jeito seja escrever, sei lá. Meu livro
está quase pronto, deverá ser lançado em breve. Queria tanto que alguém me
amasse por alguma coisa que eu escrevi.

Não sei mais o que te escrever, estou muito confuso, muito distraído.
Pressinto muito próximo o fim de alguma coisa que não sei especificar qual seja.
Mas não se preocupe muito comigo, não vale a pena. Acho que sou bastante forte
para sair de todas as situações em que entrei, embora tenha sido suficientemente
fraco para entrar. Não faço planos, não sei o que vai acontecer amanhã.
É só,
Hildinha. Um beijo enorme do seu,
Caio Fernando A breu.

PS — Depois de reler — não é tão grave assim. Fui muito dramático. Faça
boas vibrações por mim. Por favor, compreenda tudo. E escreva logo.
Abraços no Dante.