domingo, 26 de dezembro de 2010

you want to be someplace warm probably mexico even though it´s really not that cold been planning a girl girl trip in a motor home to see how it feels to leave you wanted to see just how good it feels to leave never mind the mess you´ve left behind you wanted to see just how good it feels to leave and leave everything behind just
a chance to breathe a little time of your own it don´t really matter where you go
i´ll buy you some magazines you can call me from a roadside phone let me know when your coming home you know where to find me whenever you decide you know that i´ll be here when you get home you wanted to see just how good it feels to leave never mind the mess you´ve left behind you wanted to see just how good it feels to leave.

sábado, 18 de dezembro de 2010

que assim seja.

Que a minha intensidade não me impeça de respirar vezenquando, pois suspiro o tempo todo pra encontrar espaço nesse peito que já nem se cabe. Que essas explosões de vida, de beleza e dor me permitam ao menos, por alguns momentos, absorvê-las com tranqüilidade: para que eu consiga dormir sem ter de chorar ou gargalhar até a exaustão, pois sinto falta de apenas lacrimejar ou sorrir sem contrações, descontraída. Que a felicidade não me doa sempre e tanto, a ponto de assustar. Que haja alguma suavidade nos meus olhos diante do cotidiano e que eu não me emocione exageradamente com esta delicadeza. Que eu possa contemplar o mar sem que ele me afogue por completo. Que eu possa olhar o céu imenso e que isso não me aniquile por lucidez extrema. E que quando eu escrever um texto, ao ser publicado, assim, despido de qualquer revisão emocional, dotado apenas da intuição que me foi dada, que encontre a fonte precisa que agasalhe a palavra “palavra”. Que eu não viva só em caixa alta, com esses gritos que arranham silêncios e desgovernam melodias. Que eu saiba dizer sem que isso me machuque demais. Que eu saiba calar sem que isso me provoque uma tagarelice interna inquieta. Que eu possa saber dessa música apenas que ela se comunica com algo em mim, nada mais. Que eu possa morrer de amor e, ainda sim, ser discreta. Que eu possa sentir tristeza sem que ela se aposse de toda a minha alegria. E que, se um dia eu for abandonada pelo amor, não deixe que esse abandono seja para sempre uma companhia.
*
*
Marla de Queiroz

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

two of us

Por trás dos cabelos longos e bigode, ele está olhando para baixo, observando algo fixamente. É surpreendido pela chegada do companheiro, que possui cabelos ainda mais longos que quase escondem os óculos de aro fino.

O recém-chegado senta-se ao lado do amigo, olhando para baixo e apertando os olhos devido à miopia. Após alguns segundos, pergunta:

– Ele já entrou no palco?

– Já. Está tocando há alguns minutos – responde o amigo.

– Onde é?

– No Brasil. Em São Paulo, acho.

– Está cheio?

– Muito.

O de óculos permanece em silêncio alguns segundos, tentando captar o som que vem de baixo, de longe.

– O que ele está tocando agora? Jet?

– Acho que sim, não dá para ouvir direito por causa da gritaria. Mas acho que é sim.

– Eu gosto desta música.

– Ele está falando com a platéia, mas não consigo entender nada.

– Acho que é português. Não dá para ouvir direito, o público não deixa.

– Com a gente era assim, também. Lembra no Japão? Ninguém ouvia nada.

– Olhe! All My Loving!

Ambos começam a bater as mãos no joelho, de forma quase inconsciente, acompanhando o ritmo da música. “I’ll pretend that I’m kissing…”, o de bigode canta baixinho.

– George! Você ainda se lembra da letra!

– Tem como esquecer? Aposto que você se lembra também.

– Eu me lembro de todas. Todas as músicas. Todos os versos.

– Ele está afinado ainda, não?

– Ele sempre cantou muito bem. Desde menino, ele sempre cantou muito.

Ficam em silêncio mais um pouco, olhando para baixo atentamente.

– Qual é agora? Drive my Car? A platéia esta fazendo barulho demais.

– Drive my Car. Essa é quase toda dele, sabia? Eu apenas ajudei em uns trechos.

– Está no Rubber Soul, né?

– Acho que sim. Sim.

– A platéia está cantando a música inteira.

– Como eles sabem a letra? Eles não eram nem nascidos quando lançamos isso.

– Não sei... Mas eles estão cantando a música inteira, John. Dá para ver daqui.

Permanecem em silêncio por mais algum tempo. O de óculos, mesmo sem perceber, balança a cabeça para os lados discretamente, ao som da música.

– Ele foi para o piano.

– Eu nunca entendi como ele sabia tocar tantos instrumentos. Isso não é normal.


That leads to your door
Will never disappear


– Qual ele está tocando agora? The Long and Winding Road?

– Sim. Veja! As pessoas estão chorando!

Afastando os cabelos do rosto, o míope aperta ainda mais os olhos, vasculhando a multidão.

– Não gosto dessa música – ele diz, mais para si mesmo que para o amigo.

– É linda. Ninguém conseguia fazer baladas como ele.

– Mas não gosto. Nós mal nos falávamos na época.

– Acontece. Acontece com todo mundo, por que não iria acontecer com a gente?

– Verdade.

– Ele está tocando as nossas, olhe. Antes foi And I Love Her. Agora é Blackbird.

– Eu não acredito que as pessoas ainda cantam junto, depois de tantos anos... A letra não está aparecendo no telão? – pergunta o de óculos, abaixando-se ainda mais e tentando ver o palco.

– Não, elas sabem mesmo. Dá para perceber daqui.

– Ele disse meu nome?

– Sim. Você sabe qual ele vai tocar. Ele escreveu para você.


I still remember how it was before,
and I’m holding back the tears no more…


– Você está legal, John?

– Eu e ele perdemos muito tempo. Hoje eu sei disso.

– Eu sei.

– Sabe, George... Se nós soubéssemos que eu teria tão pouco tempo, talvez tivéssemos nos comportado de outra maneira.

– Talvez não. Vocês sempre foram melhores amigos. Ele sabia disso. Ele faz questão de cantar essa, todo show. E ele sabe que você está vendo. Ele não canta para a platéia, ele canta para você. É a forma que ele encontra de matar a saudade um pouco.

– Será?

– Sim. Eu senti muito sua falta antes de nos reencontramos. Olhe as pessoas lá embaixo, estão soluçando. Todos sentem sua falta.

– Eu sinto muito a falta dele. Eu sinto muita saudade da gente. Especialmente do começo. Lembra da Alemanha?

– A gente ainda era menino... Tudo era o máximo, tudo era novidade. Nós éramos novidade.

– Nós ainda somos novidade. Olhe, essa é sua!


You’re asking me, my love will grow?
I don’t know, I don’t know


– Eu me lembro de quando escrevi. Era difícil escrever algo com vocês ali.

– Essa música é linda.

– Olhe! No telão! Ele colocou uma foto minha!

– A gente gostava demais de você. Você era mais novo, víamos você como uma espécie de caçula.

– Eu sei – concorda o de bigode, rindo alto.

Esperam em silêncio a plateia aplaudir. Ao final da música, ambos estão visivelmente emocionados, cada qual com suas lembranças. Os acordes de uma nova canção parecem despertá-los.

– Eu gosto dessa!

– Essa é dele, não é nossa.

– Band on the Run? Mas poderia ser nossa.

– Se dependesse de mim, seria.

– Ah, sim. De todos nós, você sempre foi o mais roqueiro, essa música é a sua cara.

– Ele fez muita coisa boa, né?

– Sim.

Enquanto o de óculos bate os dedos no joelho, o de bigode, sentado de pernas cruzadas transforma sua própria coxa no braço de uma guitarra imaginária. Ambos parecem distantes, talvez pensando não no que foi, mas no que poderia ter sido.


I read the news today oh boy
About a lucky man who made the grade


Enquanto o de bigode tamborila os dedos no ritmo, seu amigo remove os óculos rapidamente. Está chorando.

– Você sempre chora nessa.

– Foi uma das últimas que escrevemos juntos. Mesmo separados. Metade é minha, metade é dele. É estranho, hoje, vê-lo cantando minha parte, e eu aqui.

– Ele não está cantando sozinho.

– Como não?

– Olhe o estádio. É uma voz só, uma voz de sessenta mil pessoas.

– O que são aquelas coisas brancas? Balões de gás?

– Sim.

– Como isso fica bonito, vendo daqui de cima.

– Espere… Give peace a chance? Isso não era da música, certo?

– Não.

– Isso é seu!

– Sim.

– O estádio inteiro está cantando! Olhe os balões de gás! As pessoas estão chorando, se abraçando.

O de óculos resmunga um palavrão, sorrindo. Seus óculos estão embaçados, molhados de saudade.

– Let it be. Essa não poderia faltar.

– Eu não me conformo com isso, com as pessoas ainda saberem as letras inteiras.


But in this ever changing world
in which we live in


– Eu gosto dessa também.

– Uau! Você viu aquilo, John? São fogos?

– Ficou demais, né?

– Nós não tínhamos isso no nosso tempo.

– Nós não precisávamos.

– Mas ele também não precisa. Mesmo assim, ficou lindo.

– O que as pessoas estão cantando, agora? Hey Jude?

– Sim... Estão abraçados, cantando junto com ele.

– É engraçado, George... Eu sei que nós éramos bons... Mas acho que nunca entendi a importância que temos na vida das pessoas, até pouco tempo atrás. Quando eu assisto aos shows dele, e vejo as pessoas cantando junto, chorando... Mexe demais comigo.

– Nós éramos bons, John. Você sabe disso.

– Aparentemente, ainda somos. As pessoas ainda...

– Ainda o quê?

– Sabe, eu estava errado.

– Oi?

– Quando eu disse que o sonho acabou. Eu estava errado.

– Nós três sempre soubemos disso, que você estava errado. Você sempre falou demais. Lembra aquela confusão de sermos maiores que Deus?

– Sim... Mas o sonho... O sonho não acabou nunca. Eu errei.

– John?

– Sim?

– O sonho nunca vai acabar. Não enquanto as pessoas se lembrarem. E elas vão se lembrar para sempre.

Sorrindo, John Lennon levanta-se e oferece a mão a George Harrison.

– Você está com sua guitarra?

– Eu sempre estou com minha guitarra, você sabe.

– Vamos tocar um pouco?

– Qual?

– Qualquer uma. Deu saudade.

Milhões de quilômetros abaixo, Paul McCartney, emocionado, agradece à platéia.

Autor: Rob Gordon
link: http://champ-chronicles.blogspot.com/2010/11/two-of-us.html

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

"Estou com sede de mudanças,
mas não quero arrastar os móveis,
nem desentortar os quadros.
Quero desabitar meus hábitos."

Marla de Queiroz

O Eterno Espanto

"Que haverá com a lua que sempre que a gente a olha é com o súbito espanto da primeira vez?"

Mário Quintana
" 'O-nosso-amor-traduzia-felicidade-e-afeição, ele lembraria, suprema-glória-que-um-dia-tive-ao-alcance-da-mão.' O coração bateu mais forte."

Caio Fernando Abreu
''Estou um pouco desnorteada como se um coração me tivesse sido tirado,
e em lugar dele estivesse agora a súbita ausência, uma ausência quase palpável do que era antes
um órgão banhado da escuridão diurna da dor.
Não estou sentindo nada.
Mas é o contrário de um torpor.
É um modo mais leve e mais silencioso de existir."

Clarice Lispector
Ah! arrancar às carnes laceradas
Seu mísero segredo de consciência!
Ah! poder ser apenas florescência
De astros em puras noites deslumbradas!

Ser nostálgico choupo ao entardecer,
De ramos graves, plácidos, absortos
Na mágica tarefa de viver!
...

Quem nos deu asas para andar de rastos?
Quem nos deu olhos para ver os astros
Sem nos dar braços para os alcançar?!...

Florbela Espanca
"Eu gostaria de ir embora para uma cidade qualquer, bem longe daqui, onde ninguém me conhecesse, onde não me tratassem com consideração apenas por eu ser “o filho de fulano” ou “o neto de beltrano”. Onde eu pudesse experimentar por mim mesmo as minhas asas para descobrir, enfim, se elas são realmente fortes como imagino. E se não forem, mesmo que quebrassem ao primeiro vôo, mesmo que após um certo tempo eu voltasse derrotado, ferido, humilhado - mesmo assim restaria o consolo de ter descoberto que valho o que sou."

Caio Fernando Abreu

domingo, 31 de outubro de 2010

domingo, 24 de outubro de 2010

ando meio cheio de tudo.

O que há em mim é sobretudo cansaço --
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém.
Essas coisas todas --
Essas e o que falta nelas eternamente --;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada --
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...


Álvaro de Campos, 1934.

terra em transe.

Não é mais possível esta festa de medalhas,
este feliz aparato de glórias,
esta esperança dourada nos planaltos!
Não é mais possível esta festa de bandeiras
com Guerra e Cristo na mesma posição!

Não é possível a impotência da fé
a ingenuidade da fé...

Vejo campos de agonia,
Velejo mares do Não...
Na ponta da minha espada
Trago os restos da paixão
Que herdei daquelas guerras.
Umas de mais, outras de menos,
Testemunhas silenciosas
Do sangue que nos sustenta.
Convivemos com a morte.
Dentro de nós a morte se converte
Em tempo diário, em derrota
Do quanto empregamos,
Ao passo que vamos, recuamos.

Não anuncio cantos de paz
Nem me interessam as flores do estilo.
Como por dia mil notícias amargas
Que definem o mundo em que vivo.
Não me causam os crepúsculos
A mesma dor da adolescência.
Devolvo à paisagem
Os vômitos da experiência...

Quando a beleza é superada pela realidade,
Quando perdemos nossa pureza nestes jardins de males tropicais,
Quando no meio de tantos anêmicos respiramos
O mesmo bafo de vermes em tantos poros animais,
Ou quando fugimos das ruas e dentro da nossa casa
A miséria nos acompanha em suas coisas mais fatais
Como a comida, o livro, o disco, a roupa, o prato, a pele,
O fígado de raiva arrebentando, a garganta em pânico
E um esquecimento de nós inexplicável,
Sentimos finalmente que a morte aqui converge
Mesmo como forma de vida, agressiva.

Qual o sentido da coerência?
Dizem que é prudente observar a História sem sofrer.
Até que um dia, pela coincidência,
As massas tomem o poder...
Ando nas ruas e vejo o povo fraco, abatido,
Este povo não pode acreditar em nenhum partido.
Este povo cuja tristeza apodreceu o sangue
Precisa da morte mais do que se pode supor.
O sangue que em seu irmão estimula a dor,
O sentimento do nada que faz nascer o amor,
A morte enquanto fé e não como temor.


Estou morrendo agora, nesta hora.
Estou morrendo neste tempo.
Estou correndo meu sangue e minhas lágrimas.
Ah, Sara! Todos vão dizer que sempre fui um louco,
um anarquista, que sempre...
Ah, não sei, Sara...
Até quando suportaremos?
Até quando além da fé e da esperança suportaremos?
Até quando além da paciência e do amor suportaremos?
Até quando além da inconsciência?
Até quando? Até quando, Sara?
Sara, foi tudo por amor a você...


-- poemas esparsos do personagem Paulo Martins do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, 1967.

Cinzas

No dia do meu casamento eu fiquei muito aflita,
Tomamos cerveja quente com empadas de capa grossa.
Tive filhos com dores.
Ontem, imprecisamente às nove e meia da noite,
eu tirava da bolsa um quilo de feijão.
Não luto mais daquele modo histérico,
entendi que tudo é pó que sobre tudo pousa e recobre
e a seu modo pacifica.
As laranjas freudianamente me remetem a uma fatia de sonho.
Meu apetite se aguça, estralo as juntas de boa impaciência.
Quem somos nós entre o laxante e o sonífero?
Haverá sempre uma nesga de poeira sob as camas,
um copo mal lavado. Mas que importa?
Que importam as cinzas,
se há convertidos em sua matéria ingrata,
até olhos que sobre mim estremeceram de amor?
Este vale é de lágrimas.
Se disser de outra forma, mentirei.
Hoje parece maio, um dia esplêndido,
os que vamos morrer iremos aos mercados.
O que há neste exílio que nos move?
Digam-no os legumes sobraçados
e esta elegia.
O que escrevi, escrevi
porque estava alegre.


Adélia Prado
'Não me desespero mais.
Encontrei o leito por onde escoar o meu excesso.'

'Eu não quero mais dormir sem você, nunca mais. Eu pedi pra você não largar a minha mão e mesmo dormindo você não largou. Eu tô com medo. Você é perfeito pra mim. Muito. Todo. (...) Agora eu não acho nada, não penso nada, não quero mais saber de nada. Eu me abandonei em você. Nada nunca foi tão bom.'

'Eu estou vazia. Meu apartamento tá vazio. São Paulo tá vazia. Eu estou morrendo de amor. Eu queria te dar a minha última lágrima, mas eu estou seca. Eu não consigo nem chorar.'

'Algumas vezes quebram minhas pernas, chutam minha cara, pisam em meus dedos. Eu sobrevivo, tenho sobrevivido. Sou marcada, sim, mas faço valer cada uma das minhas cicatrizes.'

(filme Nome próprio)

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

tudo é verbo.

‎'tudo é verbo, verso, papo furado. tudo pode ser rasgado, cuspido, jogado no lixo. obra prima perdida em rasuras. (...) não quero mais sensações de eternidade, abraços pra sempre, sussurros de amor. creio em frases desacompanhadas, em palavras cruas, textos sem autor. tudo é falta de comprometimento, tudo é vácuo, vazio, relento. tudo é falta de rumo, um peito apertado, tristeza sem dor...'

- Marla de Queiroz

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Itinerário;

De repente, estou só. Dentro do parque, dentro do bairro, dentro da cidade, dentro do estado, dentro do país, dentro do continente, dentro do hemisfério, do planeta, do sistema solar, da galáxia - dentro do universo, eu estou só. De repente. Com a mesma intensidade estou em mim. Dentro de mim e ao mesmo tempo de outras coisas, numa seqüência infinita que poderia me fazer sentir grão de areia. Mas estar dentro de mim é muito vasto. Minhas paredes se dissolvem. Não as vejo mais, e por um instante meu pensamento se expande, rompendo limites num percurso desenfreado. Nesse rápido espraiar, meu ser anexa a si as coisas externas. O parque, as árvores., o sol, as gentes deixam de ter existência privada e, dentro de mim, estão sob meu domínio. Como membros de meu corpo, ou pensamentos já feitos ou palavras já formuladas -eles se aninham em mim, fazendo parte do meu ser. Me torno em parque, em árvore, sol, em gentes. O processo é tão breve que sequer tenho tempo de regozijar-me com ele. Porque subitamente tudo volta.
E sou apenas um homem no parque - reduzido somente a minha condição de homem no parque. Espio para fora de mim e vejo as coisas que não são mais minhas. As árvores debaixo das quais estou, esta folha que há pouco deslizou pelo meu chapéu, escorregou por ombro, atingindo a mão onde a esmago, esta gente para quem sou um homem no parque. Na minha mão o contato da folha ferida é áspero. Mas não fere. Frente a meus olhos: hirta, seca, amarelada, é uma folha do inverno. As ramificações se expandem em mil caminhos até as bordas, na tentativa já inútil de levar a seiva aos pontos mais recuados, e ela é uma coisa morta. O pequeno talo vibra entre meus dedos como um ser vivo e agonizante num último espasmo. Olho as pontas reviradas e, num gesto, torno a esmagá-la. Já não é folha, já não é nada -somente um punhado de poeira que escorrega incômoda manga adentro do casaco. No entanto, não sou um assassino: sou um homem no parque! quase grito para que as outras pessoas escutem e olhem para mim e vejam como sou inteiramente normal trivial banal e até vulgar dentro deste terno escuro, antiquado -preciso que tomem consciência do meu ser e preciso eu mesmo tomar consciência do que sou e do que significo nesta brecha de tempo. Por isso baixo os olhos e, subindo-os desde o bico dos sapatos, vistorio todo o conjunto que forma o meu ser em exposição. Calças, casaco, chapéu eu sou um homem no parque! Novamente quase grito porque a realidade de repente oscila, ameaçando quebrar-se em fatias que ferem. Apoiado em minha segurança, que se revela precária, eu luto.
E eis que a luta finda. Eu cedo. Novamente as coisas se dissolvem e torno a escorregar para dentro de mim. Mas estar em mim já não é vasto. Minha extensão reduziu-se a este círculo acinzentado que é meu pensamento. Minha extensão é tão mínima que sufoco dentro dela. Tudo se resume a esta extensão. Não há mais nada fora de mim. Impossível a fuga. Meus membros se encolhem como um tecido ordinário, recém-levado, estendido ao sol. Tudo se comprime em torno de mim. Este círculo acinzentado apertando cada vez mais, repleto de arestas, de pontas aguçadas. Neste círculo estou em rotação. Meu ser vai girando, girando num lento corrupio, num movimento que é quase dança, quase ciranda. As arestas ferem leve, com jeito de carícia, as pontas apenas afagam enquanto o pensamento se esquiva, na esperança de sair ileso. Então tudo cessa.
E volta o parque com suas gentes passando, com aquela série de coisas que constituem o ser de um parque. Acendo um cigarro, minha mão treme, devolvida à segurança que em relação às coisas de fora novamente se revela eficiente. Nas minhas calças, o pó da folha é a lembrança do crime sem júri nem juiz, nem poluição. A meus pés, o trabalho das formigas é intenso neste outono quase inverno, repleto de folhas caídas. A longa fila se encaminha lenta, desviando-se de meus sapatos, folhas equilibradas sobre as cabeças, ultrapassando os pés do homem a meu lado, as pernas vagamente tortas daquela mulher mais adiante, as meias azuis daquela adolescente. Até o formigueiro, onde as despensas devem estar abarrotadas. Mas as cigarras já não cantam.
Tudo volta. Procuro retomar a meu último pensamento: tinha relação com infância e livro, eu sei. E busco. Por entre essa infinidade de formas, de signos desfeitos com que são construídos os pensamentos por entre esse amontoado de lembranças feitas de imagem incompletas como retratos rasgados; por entre essas idéias a que faltam braços, pernas, cabeças por entre os retalhos dessa caótica colcha de que é tecido o cérebro de um homem no parque, eu busco. Sem encontrar. A segurança das coisas fáceis e simples desliza entre meus dedos recusando fixar-se. E há o cigarro: essa tonalidade azulada é apenas a fumaça subindo em lentas espirais, cada vez mais densa, tomando conta de mim, eu sei, deve ser, porque as coisas não sendo o que são outra vez me jogarão num mundo de procuras e espantos.
E de novo estou em mim. Ainda preso nas engrenagens do círculo. Que desta vez não ferem. Dentro da minha pequena extensão me são permitido o movimento e o investigar. Movimento e investigar vãos, porque é tudo tão ínfimo que nem há mistérios pelos cantos. Não há perspectiva na espera de serem pressentidas. Não há sequer vértices nesta superfície despida de arestas: só a leve chama, em aceno trêmulo por entre o vazio. Mas eu não quero. Seria preciso abdicar de todas as minhas verdades essas estrutura das lentamente, dia após dia, quase minuto a minuto, suavizando os contornos da realidade quando esta se torna áspera. Seria preciso abdicar de meu ser cotidiano, construído em longo labor. Seria preciso abdicar de minha segurança, e eu a acumulei em paciência em tédio, mas a fiz forte, e se agora periclita é porque todos nós temos o nosso momento de queda. E este é o meu.
No vácuo de mim eu me despenco. Porque seria preciso também abdicar de mim mesmo para novamente reconstruir-me. Tornar a escolher os gestos, as palavras, em cada momento decidir qual dos meus seus assumir. Já esfacelei meu ser, já escolhi as porções que me são convenientes, esquecendo deliberado as outras. E são elas -serão elas? -que agora se movimentam revoltadas, pedindo passagem em gritos mudos, na ânsia de transcender limites, violentar fronteiras, arrebentando para a manhã de sol. O tremular da chama é um aceno, convite para chegar à verdade última e íntima de cada coisa.
Não quero. Não posso restar nu, despojado de mim mesmo. Não posso recomeçar porque tudo soaria falso e inútil. As minhas verdades me bastam, mesmo sendo mentiras. Não é mais tempo de reconstruir.
Em luta, meu ser se parte em dois. Um que foge, outro que aceita. O que aceita diz: não. Eu não quero pensar no que virá: quero pensar no que é. Agora. No que está sendo. Pensar no que ainda não veio é fugir, buscar apoio em coisas externas a mim, de cuja consistência não posso duvidar porque não a conheço. Pensar no que está sendo, ou antes, não, não pensar, mas enfrentar e penetrar no que está sendo é coragem. Pensar é ainda fuga: aprender subjetivamente a realidade de maneira a não assustar. Entrar nela significa viver .
Sôfrego, torno a anexar a mim esse monólogo rebelde, essa aceitação ingênua de quem não sabe que viver é, constantemente, construir, não derrubar. De quem não sabe que esse prolongado construir implica em erros, e saber viver implica em não valorizar esses erros, ou suavizá-los, distorcê-los ou mesmo eliminá-los para que o restante da construção não seja abalado. Basta uma pausa, um pensamento mais prolongado para que tudo caia por terra. Recomeçar é doloroso. Faz-se necessário investigar novas verdades, adequar novos valores e conceitos. Não cabe reconstruir duas vezes a mesma vida numa única existência. Por isso me esquivo, deslizo por entre as chamas do pequeno fogo, porque elas queimam. queimar também destrói.
Perplexidade, recusa e medo feitos em palavra fazem tudo recuar. O círculo abandona meus membros, a chama se apaga. A luta vai-se tomando lassidão. Revolta sufocada são rumores que abafo lentamente, com a delicadeza monstruosa de quem estrangula uma criança dormindo.
Eis que começo a voltar. Não de uma galáxia distante, de outro planeta, sequer de uma cidade ou um parque. De mim, volto. Em tomo as árvores principiam a ganhar consistência, negativo aos poucos revelado, água escorrendo da capa de obscuridade. São verdes, as árvores. Seus troncos nascem da terra, se alongam em braços recobertos pelas folhas que o outono amarelou. Troncos rugosos, feito de pequenos pedaços ásperos, de cor indefinida. Mas elas são verdes. Todos as vêem verdes, mesmo agora, com as folhas amareladas, com a cor-sem-cor de seus caules. O céu azul. Mesmo sendo cinzento ou incolor o ar que o faz. É preciso dar cor e forma às coisas porque desnudas elas apavoram.
Respiro. Fecho os olhos. O ar penetra as narinas abrindo caminhos pelo corpo num automatismo que não terá fim enquanto eu viver .
Estou de volta. Minhas mãos sobre os joelhos, os joelhos cobertos pelo pano preto das calças, o pano afunilando até os pés metidos em meias listradas de azul e branco, dentro do marrom dos sapatos. Tudo me diz que estou de volta. Aceito. Suspenso no meu pulso, o tempo tiquetaqueia no ritmo do relógio. Onze horas. Preciso ir andando. Há mulher há filhos há trabalho há a prestação da televisão que passará um bangue-bangue legal e pensando como qualquer homem neste ou noutro hoje à noite e eu gosto de bangue-bangue como um menino gosta de sorvete metido no meu pijama de bolinhas nas minhas chinelas às quais se amoldam meus pés como dentro de uma fôrma e a minha poltrona funda e o cachimbo e o jornal do lado. Tudo tão simples. Já vi mil vezes cenas iguais em filmes e livros e revistas. Tanto e tanto que duvido delas. Mas dúvida faz escorregar. E no fundo, depois do longo deslizar, no fundo é Úmido e frio, apesar da chama. Faz-se necessário testar, apalpar as massas que recusam definições. Faz-se necessário avançar. Mas tudo impede o avanço. E dói.
Não.
E eis então que caminho para rua, chamo um táxi, entro nele. Eis aí que olho pela janela, vejo o parque, o banco, as pipocas que não comprei. Eis assim que encosto a cabeça no banco, apanho um cigarro e trago longamente. Eis depois que solto a fumaça de um jeito que não sei se é sopro ou suspiro. Eis.

(Caio Fernando Abreu, Itinerário in "Inventário do Ir-remediável")

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A Vera Antoun

London, 19/10/73

"Fui o único culpado da nossa separação
Por isso tenho amargado, margando na solidão
Mas tenho os olhos tranqüilos, de quem sabe seu preço,
Vou navegando, vou temperando,
Pra cima a coisa toda muda.
Pra baixo todo santo ajuda."

Outro dia senti frio na alma. Foi no Holland Park, pisando num enorme
tapete de folhas douradas. Aí senti o outono, o cinzento se acentuando nas coisas,
as pessoas se virando para dentro — o inverno chegando depressa, um frio de
rachar. Na alma mesmo. As tuas 1.001 cartas cheias de sunshine clareavam um
pouco os dias, as transas. Que te dizer? Que te amo, que te esperarei um dia numa
rodoviária, num aeroporto, que te acredito, que consegues mexer dentro-dentro de
mim? É tão pouco. Não te preocupa. O que acontece é sempre natural — se a
gente tiver que se encontrar, aqui ou na China, a gente se encontra. Penso em você
principalmente como a minha possibilidade de paz — a única que pintou até agora,
“nesta minha vida de retinas fatigadas”. E te espero. E te curto todos os dias. E te
gosto. Muito.
Tô morando, trabalhando, estudando e amando. Esses são os quatro foles da
minha vida, no momento, e sobre cada um deles eu teria milhares de páginas a
preencher. Sei lá, menina, tá tudo tão legal — e um legal tão batalhado, um legal
merecido, de costas e pernas doendo, mas coração tranqüilo. Augusto, Marisa e eu
conseguimos um apartamentinho lindo, num lugar ótimo, no aluguel se foi todo
nosso dinheiro, Augusto começou a trabalhar logo, eu e Marisa ficamos duríssimos.
Foi chato, apanhei uma gripe e alguns grilos — até que esta semana comecei a fazer
limpeza numas casas. O primeiro dia foi terrível: eu tinha medo de não saber fazer
nada, de não entender nada. Não dormi à noite, tive dor de barriga. Aí me
desdobrei, fiz tudo direitinho — o meu inglês aos poucos está começando a fluir e,
se ainda não consigo ter uma conversa, pelo menos já me comunico. Isso me deixa
feliz à beça, eu tava me sentindo meio retardado, meio analfabeto. Fluência agora é
uma questão de tempo.
No meio de tudo isso, pintou uma pessoa. É um menino cubano chamado
Nelson — ele saiu de Cuba aos 11 anos, morou nos Estados Unidos uma porção
de tempo e agora está aqui, estudando dança moderna. É Libra, ascendente Virgem
— eu sou Virgem ascendente Libra. Foi, está sendo, lindo. Sei lá, eu tava me
sentindo muito cansado, muito carente — e me recusava a procurar qualquer
transa. Estava completamente só, há quase seis meses. Eu sabia que ia pintar — eu
vim para Londres porque sabia que aqui ia pintar. E pintou. Foi a maior força
possível — me recuperei completamente do complexo de inferioridade e de
abandono, senti outra vez aquelas coisas, lembrei de todas as letras do Roberto
Carlos — fiquei, enfim, meio cafona como sempre fico nessas situações, mas agora
já voltei a pisar na terra — tudo fica mais concreto, e eu compreendo melhor.
Dei pulos com o endereço da Sílvia — eu não sabia que ela estava aqui.
Como não tem telefone, escrevi uma carta ontem. Acho que ela vai pintar aqui
neste fim de semana. Vai ser um pouco como rever você, sabe?
Acho que você vai gostar de saber: estou há quase dois meses firme na
macrobiótica. Não é uma dieta rígida porque, trabalhando, não há mesmo
condições. Mas cortei completamente a carne, como arroz integral e muitos
vegetais, chá de Mu — não tomo refrigerantes nem café. Só não consigo cortar o
cigarro. Mas parei também com o haxixe, porque a minha cuca anda ficando meio
pirada ao natural — e eu acho que realmente já passei por tudo isso.
Outra coisa: a vontade de escrever VOLTOU. Não sei se foi o impulso que
o Nelson me deu, ou mesmo Londres — a verdade é que voltou. Só que eu não
consigo escrever à mão — não dá mesmo, uma carta ainda sai, mas um conto não
tem jeito — é primitivo e lento demais. Estou tentando economizar para comprar
uma máquina de escrever — é o meu sonho atual, bem humildezinho como você
vê. Voltei a ver o tarot, depois de deixá-lo descansar por uns dois meses. Parece
que Medéia recuperou os seus poderes. Olha, estou com a sensação de estar
escrevendo uma carta muito besta. Vou parar. Abro à toa o Fernando Pessoa e
peço uma mensagem para ti. Ele manda dizer isto:
“Tuas mãos esguias, um pouco pálidas, um pouco minhas,
Estavam naquele dia quietas pelo teu regaço de sentada,
Como e onde a tesoira e o ideal de uma outra.
Cismavas, olhando-me como se eu fosse o espaço.
Recordo para ter o que pensar, sem pensar.
De repente, num meio suspiro, interrompeste o que estavas sendo
Olhaste conscientemente para mim e disseste:
“Tenho pena que todos os dias não sejam assim.”
Podem voltar a ser, quem sabe? Acendo vela, queimo incenso — falo de
você para Augusto e Marisa, lembro Leme, Botafogo, coloco o disco da Gal e fico
ouvindo Tbe archaic lonely blI4es — eu sei não me diga.
Verinha, tudo passa, tudo vai embora — a gente tem que se encontrar. Meu
livro deve sair no Brasil talvez até o fim do ano — eu ganharia + ou - 2.000 com a
publicação — a gente podia usar esse dinheiro para a tua passagem, não é? Mas, sei
lá, não queria que você viesse apenas por mim, entende? Em qualquer
circunstância, eu acho, a experiência Europa é fundamental — desde que não se
corte nenhum processo importante por aí. E pelas minhas cartas suecas você deve
ter percebido que não é absolutamente uma coisa leve. A gente sangra e geme —
mas sai mais vivo, “com a vida dividida pra lá e pra cá”. O que não queria é que
você futuramente talvez me culpasse, entende? Mas acho que é besteira ficar
tentando desvendar o futuro — apesar do tarot e do I Ching. Ao mesmo tempo
gostaria que tomássemos alguma providência REAL sobre a sua vinda. Mande me
dizer o que você pensa de tudo isso — mas pense bem, é uma coisa séria — muito
mais do que a gente pensa quando está aí.
Vou dormir. Amanhã é sábado, tem Portobello. Estou morto de cansaço, e
minha cuca dói de tanto esforço, o dia inteiro, para pensar, falar e entender inglês.
Às vezes, falando ou escrevendo em português, tenho uns brancos — só vem
inglês. Ou acabo apanhando uma antipatia mortal por essa língua ou viro o maior
admirador da face da Terra. Quero sonhar com você, com o sol e o cometa que
vem no fim do ano — eu tô sabendo.
21.10.73 — Domingo. Noite. Televisão ligada: Clark Gable. Homero e
Augusto. Sempre entre pólos que não me agradam: o desbunde dum lado, a
frescura do outro. Fico no meio. Sinto falta de solidão, de silêncio. Estou um
pouco angustiado por causa disso. Consigo manter apenas o quarto razoavelmente
calmo e limpo, com vela acesa e incenso. Mas não tenho tempo para mim. E tudo
demais pela metade, compartilhado. Não sei se agüento muito tempo mais. Tento
conviver — convivo — mas é, quase sempre, uma violação incrível. Tenho
vontade de ter segredos outra vez. Guardo segredos pequenos — as coisas que
penso ou sinto, pequenos acontecimentos que não descrevo à “comunidade”.
Ontem dormi demais, não fui a Portobello encontrar Nelson. Ele me
mandou um pequeno cactus dentro dum vasinho de cerâmica. Fiquei espantado:
nunca tinha recebido um vegetal vivo de presente — e senti pena de não ter ido.
Depois, os telefones ocupados, os desencontros de ontem e hoje. Sunday, bloody
Sunday. E tão difícil me comunicar com ele. Às vezes eu penso em desistir, eu acho
que não agüento essa aprendizagem toda outra vez — fico tentado a desistir. Não
sei bem por que insisto, posso dizer apenas frases feitas sobre isso, mas na verdade
não sei. Na cozinha, lavando pratos, lembro muito de minha mãe — compreendo
tanto mais ela, agora. Compreendo tudo muito mais. Dói e é incômodo. Vontade
de não saber perdoar, de não ser compreensivo tolerante — de não me contentar
com o pouco — “amor malfeito, depressa, fazer a barba e partir”.
O domingo tá acabando — já é tarde — amanhã a gente começa de novo.
Eu me sinto às vezes tão frágil, queria me debruçar em alguém, em alguma coisa.
Alguma segurança. Invento estorinhas para mim mesmo, o tempo todo, me
conformo, me dou força. Mas a sensação de estar sozinho não me larga. Algumas
paranóias, mas nada de grave. O que incomoda é esta fragilidade, essa aceitação,
esse contentar-se com quase nada. Estou todo sensível, as coisas me comovem.
Tenho regressões a estados antigos, às vezes, mas reajo, procuro me manter ligado
às coisas novas que descobri. Mas tudo fica e se sucede — quase nunca dá tempo
de você se orientar, escolher — não gosto de me sentir levado — e aqui não dá
tempo. Muitos grilos agindo, muita dúvida, umas voltas de insegurança. Faz tempo
ando transferindo uma porção de providências — como é que a gente faz pra se
manter sempre alerta? Eu não agüento tanta atividade física e mental.
Quando escrevo pra você é como se escrevesse pra mim mesmo — às vezes
o jeito me escapa, e é então que as cartas ficam parecendo bestas. Tento ler, não
consigo. Uma carta é dificil — imagine um conto. Às vezes odeio ouvir e/ou falar
inglês — coloco uma barreira na cuca e fico surdo-mudo o máximo possível. Não
consigo ser verdadeiro o tempo todo. Mas você me saca, eu sei.
Agora Marisa saiu com Peter — Augusto foi deitar, Homero resolveu dormir
e foi deitar também. Eu fiquei sozinho na sala, com o barulho do relógio e um pote
de flores amarelas.
Vera, esse negócio com o Nelson tá me machucando muito. Eu fiquei uma
porção de tempo tentando ser “legal e maduro”, “uma presença leve e agradável”
— porque eu tô ainda muito inseguro de mim mesmo, e não acreditando
absolutamente que alguém possa me curtir bem assim como eu sou. Eu não tenho
quase experiência dessas transações, me enrolo todo, faço tudo errado — acabo me
sentindo confuso. Tudo isso é tão íntimo, e eu já estou tão desacostumado de me
contar inteiramente a alguém, tão desacreditando na capacidade de compreensão
do outro, sei lá, não é nada disso, sabe? Conviver é difícil — as pessoas são dificeis
— viver é dificil paca. Estar transando com alguém sempre me funde um pouco —
eu fico muito pobre, acho, muito carente, e muito rico de outras coisas. Queria
botar um tarot pra mim, mas os guris estão no quarto, dormindo.
Ontem à noite fui a um meeting do gay liberation. Grotesco.
Sabe o que eu sinto? Tem duas coisas me puxando, dois tipos de vida — e
eu não quero nenhum deles. Quero um terceiro, o meu. Que ninguém tá curtindo.
A gente tem uma porção de amigos brasileiros, todos legais, mas nenhum
realmente próximo, é estranho. E eu não tô querendo viver como eles vivem —
não tô conseguindo viver como eu gostaria — e não tenho coragem de ficar
sozinho e tentar, você me entende? Acho que não. Eu vou levando, tenho horas de
soluções drásticas, vou levando. Mas não sei até quando. Mesmo Nelson, que podia
ter uma certa importância nesse sentido, de impulsionar uma escolha — ou pelo
menos dar força — mesmo ele, consegue não ter peso nenhum, não interferir, não
modificar nada. E eu fico muito comigo mesmo nisso tudo — cada vez mais
sufocado, mais necessitado que pinte um VERDADEIRO ENCONTRO com
outra pessoa, seja em que termos for. Parece que ou eu ou os outros não somos
mais tão disponíveis. Será que estou fechando, perdendo a curiosidade? Eu não sei.
Vou dormir. Amanhã te escrevo mais um pouco. Sílvia não apareceu. Eu tava
esperando me entender um pouco com ela.


23.10.73

Cansado. Trabalhando o dia inteiro na casa de uma grega. Marisa chegou da
rua com dois Ministers, milagrosamente descolados com uma brasileira encontrada
ao acaso. Caminhei horas na chuva procurando Nelson. Não encontrei. Ele não
telefonou. Resultado: acho que vou mesmo alugar uma máquina de escrever, não
dá mesmo pra agüentar. Não fui à escola, não fui à agência pedir emprego para
amanhã. Tem um verso de Camões assim: “Este amor ledo e cego que a tristeza
não deixa durar muito”. Pois é. Me perco nos metrôs, sinto dor nas pernas. A força
é chegar em casa, tomar um banho e um chá, encontrar Augusto. Mas tudo bem,
tudo bem, tudo bem. Amanhã ninguém. “Tô cansado e você também”. Quero ir
para Barreira, mas quero ver o mundo antes. Preciso machucar um pouco mais
meu coração, doer um pouco mais meu corpo, fatigar meus olhos, leio Rimbaud e
Cesar Vallejo, um peruano que morreu em Paris, com aguaceiro.
Odeio amar, não é engraçado? Amanhã tento de novo. Amar só é bom se
doer. Parou de chover. Não sei qual é o Deus padroeiro das cartas — mas de
qualquer maneira a noite de hoje foi dedicada a ele. Hoje eu queria alguém que me
dissesse que eu não precisava me preocupar — como no Last Picture Show — um
ombro, uma mão. Desculpe tanta sede, tanta insatisfação. Amanhã, amanhã
recomeço.
Te espero, te gosto, te beijo
Caio

sábado, 14 de agosto de 2010

Ao simulacro da imagerie

O céu tão azul lá fora, e aquele mal-estar aqui dentro.
Fora: quase novembro, a ventania de primavera levando para longe os últimos maus espíritos do inver¬no, cheiro de flores em jardins remotos, perfume das pri¬meiras mangas maduras, morangos perdidos entre o monóxido de carbono dos automóveis entupindo as ave¬nidas.

Caio Fernando Abreu. Ao simulacro da imagerie. In: Caio 3D: O essencial da década de 1990.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

"... isso que chamamos de amor, esse lugar confuso entre o sexo e a organização familiar..."

Sérgio, não sabia como começar - então comecei copiando essa frase aí de cima, é Caetano Veloso numa entrevista ao JB, vim lendo pelo caminho, não consegui me livrar dela.

Agora estou aqui, escrevendo para você no meu quarto antigo, que minha mãe conserva tal-e-qual, como se eu um dia fosse voltar para casa. E lá se vão - quantos mesmo? - sei lá, quinze vinte anos, qualquer coisa assim.

Chove. Faz frio. É bom estar aqui. Tão bom. Me sinto protegido. Ficamos vendo velhas fotografias, bebendo vinho e rindo muito. Meu irmão Felipe vestiu um modelinho de couro negro e saiu "para dar uma prensa numa caixa de supermercado". Márcia está tão bonita. E Rodrigo, meu sobrinho, que tem dois anos e não parece quase me desconhecer. Deixei-os vendo um filme antigo dos Beatles, Lennon repetindo "don´t let me down" - e agora percebo que meu inglês anda tão precário que não lembro se é d´ont ou don´t.

Cansado, cansado. Quase não dormi. E não consigo tirar você da cabeça. Estou te escrevendo porque não consigo tirar você da cabeça. Hesito em dizer qualquer coisa tipo me-perdoe ou qualquer coisa assim. Mas quero te contar umas coisas. Mesmo que a gente não se veja mais. Penso em você, penso em você com força e carinho. Axé.

Foi mau, ontem. Fui mau, também. Menos com você, mais comigo mesmo. Depois não consegui dormir. Me bati pela casa até quase oito da manhã. Teria telefonado para você, não fosse tão inconveniente. Acabei ligando para Grace, pedi paciência, chorei, contei, ouvi.

Não era nada com você. Ou quase nada. Estou tão desintegrado. Atravessei o resto da noite encarando minha desintegração. Joguei sobre você tantos medos, tanta coisa travada, tanto medo de rejeição, tanta dor. Difícil explicar. Muitas coisas duras por dentro. Farpas. Uma pressa, uma urgência.

E uma compulsão horrível de quebrar imediatamente qualquer relação bonita que mal comece a acontecer. Destruir antes que cresça. Com requintes, com sofreguidão, com textos que me vêm prontos e faces que se sobrepõem às outras. Para que não me firam, minto. E tomo a providência cuidadosa de eu mesmo me ferir, sem prestar atenção se estou ferindo o outro também. Não queria fazer mal a você. Não queria que você chorasse. Não queria cobrar absolutamente nada. Por que o Zen de repente escapa e se transforma em Sem? Sem que se consiga controlar.

Te escrevo com um cigarro aceso e uma xícara de chá de boldo. A escrivaninha é muito antiga, daquelas que têm uma tampa, parece piano. Tem um pôster com Garcia Lorca na minha frente. Um retrato enorme de Virginia Woolf. E posso ver na estante assim, de repente, todo o Proust, e muito Rimbaud, e Verlaine, Faulkner, Ítalo Svevo, William Blake. Umas reproduções de Picasso. Outras de Da Vinci. Um biscuit com um pierrô tão patético. Uma pedra esotérica ainda de Stonehenge, Inglaterra, uma caixinha indiana. Todos os meus pedaços aqui.

E você não me conhece, eu não conheço você.

Te escrevo por absoluta necessidade. Não conseguiria dormir outra vez se não te escrevesse.

Zelda, há também o único romance escrito por Zelda Fitzgerald, a mulher de Scott Fitzgerald, que morreu louca, um incêndio, um hospício. Chama-se "Save me the waltz". "Reserve-me a valsa", não é lindo? Lembra o Brahma, se se dançasse no Brahma.

Please, save me the waltz.

Fiz fantasias. No meu demente exercício para pisar no real, finjo que não fantasio. E fantasio, fantasio. Até o último momento esperei que você me chamasse pelo telefone. Que você fosse ao aeroporto. Casablanca, última cena. Todas as cartas de amor são ridículas. Esse lugar confuso de que fala Caetano. E eu estava só começando a entrar num estado de amor por você. Mas não me permiti, não te permiti, não nos permiti. Pedro Paulo me dizendo no ouvido "nunca vi essas luz nos seus olhos".

Eu não queria saber.

Tão artificial, tão estudado. Detesto ouvir minha voz no gravador ou ver minha imagem em vídeo. Sôo falso para mim mesmo. A calma, o equilíbrio, as palavras ditas lentamente, como se escolhesse. Raramente um gesto, um tom mais espontâneo. Tão bom ator que ninguém percebe minha péssima atuação.

Você compreende tudo isso?

Pausa. Campainha. O jornal de domingo. Desço, outro chá de boldo. Um comentário de Rubens Ewald sobre Aqueles dois, diz que é excelente, fala da "dignidade e tratamento delicado dado ao tema". Lembro da crítica de Sérgio Augusto, de como fez mal por dentro. Já passou.

Quando pergunto você-compreende-tudo-isso não estou subestimando você. Ah, deus, perdoe. Não sinto agressividade nenhuma em relação a você. E gosto das tuas histórias. E gosto da tua pessoa. Dá um certo trabalho decodificar todas as emoções contraditórias, confusas, soma-las, diminui-las e tirar essa síntese numa palavra só, esta: gosto.

Dormi umas três horas e acordei ouvindo Quereres, de Caetano. Repeti, várias vezes, cada vez mais alto. Ah, bruta flor do querer. Discutia tanto com Ana Cristina César, antes que ela acolhesse a morte (acertadamente? Me pergunto até hoje, nunca sei responder): nossa necessidade fresca & neurótica de elaborar sofrimentos e rejeições e amarguras e pequenos melodramas cotidianos para depois sentar Atormentado & Solitário para escrever Belos Textos Literários.

O escritor é uma das criaturas mais neuróticas que existem: ele não sabe viver ao vivo, ele vive através de reflexos, espelhos, imagens, palavras. O não-real, o não-palpável. Você me dizia "que diferença entre você e um livro seu". Eu não sou o que escrevo ou sim, mas de muitos jeitos. Alguns estranhos.

Não há nenhum subtexto nisto que te escrevo. Não acho bonito que a gente se disperse assim, só isso. Encontre, desencontre e nada mais, nunca mais, é urbano demais - e eu nasci praticamente no campo, até os 15 anos quase no campo, céu e campo. Não sei se a gente pode continuar amigo. Não sei se em algum momento cheguei a ver você completamente como Outra pessoa, ou, o tempo todo, como Uma Possibilidade de Resolver Minha Carência. Estou tentando ser honesto e limpo. Uma possibilidade que eu precisava devorar ou destruir. Porque até hoje não consegui conquistar essa disciplina, essa macrobiótica dos sentimentos, essa frugalidade das emoções. Fico tomado de paixão.

Há tempos não ficava.

E toda essa peste, meu amigo. O que tem me mantido vivo hoje é a ilusão ou a esperança dessa coisa, "esse lugar confuso", o Amor um dia. E de repente te proíbem isso. Eu tenho me sentido muito mal vendo minha capacidade de amar sendo destroçada, proibida, impedida, aos 36 anos, tão pouco. Nem vivi nada ainda. E não sou sequer promíscuo. Dum romantismo não pós, mas pré todas as coisas - um romantismo que exige sexualidade e amor juntos. Nunca consegui. Uns vislumbres, visões do esplendor. Me pergunto se até a morte - será? Será amor essa carência e essa procura de amor, nunca encontrar a coisa?

Das minhas heterossexualidades, dois filhos mortos, não ficou nada. Das minhas homossexualidades, esse pânico lento e uma solidão medonha. A hora é tão grave.

Vim pegar energia. Sim. Preciso ver a terra, preciso do horizonte do pampa. Já começa a agir, meus ombros se soltaram. Olhei no espelho e aquela ruga entre as sombrancelhas se desfez.

Não quero me tornar uma pessoa pesada, frustrada, amarga. Não vou me tornar assim. Então vacilo, escorrego e a mania de perfeição virginiana e a estética libriana no dia seguinte me dizem "que vergonha, que vergonha, que vergonha".

Eu podia dizer que tinha/tínhamos bebido demais. Eu podia dizer que estava com tanto medo de vir para Porto Alegre. Eu podia contar a você dos meus últimos meses, oito, dez, doze horas por dia sobre a máquina de escrever, falando com quase ninguém. Sozinho, às vezes. Cantando também. Tudo isso, se eu te dissesse, talvez tivesse ajudado a doer menos em você.

De repente me passa pela cabeça que você pode estar detestando tudo isso e achando longo e choroso e confuso. Mas eu não quero ter vergonha de nada que eu seja capaz de sentir. Tento não ficar assustado com a idéia que este tempo aqui é curto, que eu vou voltar a São Paulo e que talvez não veja mais você. Sei que não fico assustado demais, e enfrento, e reconstituo os pedaços, a gente enfeita o cotidiano - tudo se ajeita. Menos a morte.

Mas de tudo isso, me ficaram coisas tão boas. Uma lembrança boa de você, uma vontade de cuidar melhor de mim, de ser melhor para mim e para os outros. De não morrer, de não sufocar, de continuar sentindo encantamento por alguma outra pessoa que o futuro trará, porque sempre traz, e então não repetir nenhum comportamento. Ser novo.

Quando te falo da idade, quando te falo do tempo, e não tivemos tempo - queria te falar de Cronos, Saturno, da volta pelo Zodíaco quando se completa 30 anos. A tua estrela é muito clara, tem sinais bons na tua testa. Compreendo teu Plutão e a Lua encarcerados na casa XII - as emoções e paixões aprisionadas -, e também Urano, todo o impulso bloqueado. Na mesma casa, a do Karma, a dos espíritos que mais sofrem, tenho também o Sol, Mercúrio e Netuno. Somos muito parecidos, de jeitos inteiramente diferentes: somos espantosamente parecidos. E eu acho que é por isso que te escrevo, para cuidar de ti, para cuidar de mim - para não querer, violentamente não querer de maneira alguma ficar na sua memória, seu coração, sua cabeça, como uma sombra escura. Perdoe a minha precariedade e as minhas tentativas inábeis, desajeitadas, de segurar a maçã no escuro. Me queira bem.

Estou te querendo muito bem neste minuto. Tinha vontade que você estivesse aqui e eu pudesse te mostrar muitas coisas, grandes, pequenas, e sem nenhuma importância, algumas.

Fique feliz, fique bem feliz, fique bem claro, queira ser feliz. Você é muito lindo e eu tento te enviar a minha melhor vibração de axé. Mesmo que a gente se perca, não importa. Que tenha se transformado em passado antes de virar futuro. Mas que seja bom o que vier, para você, para mim.

Com cuidado, com carinho grande, te abraço forte e te beijo,

Caio F.

p.s.: Te escrevo, enfim, me ocorre agora, porque nem você nem eu somos descartáveis. E amanhã tem sol.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

tinha de ser justo amor.. ?

Podia ser só amizade, paixão, carinho, admiração, respeito, ternura, tesão. Com tantos sentimentos arrumados cuidadosamente na prateleira de cima, tinha de ser justo amor, meudeus?

Porque quando fecho os olhos, é você quem vejo; aos lados, em cima, embaixo, por fora e por dentro de mim. Dilacerando felicidades de mentira, desconstruindo o que era em parte, abrindo todas as janelas para um mundo deserto de nós dois. É você quem sorri, morde o lábio, fala grosso, abre potes, inventa histórias, me tira do sério, faz ares de palhaço, pinta segredos, ilumina o corredor onde todos os túneis são começos de qualquer coisa de feliz, de leve, de azul, de puro e de meu.

Não, não me fale em medo, paciência, tempo que vai chegar. Não volte dois espaços, não negue, apareça. Sou vírgulas, você é lacunas. “Claro, o dia de amanhã cuidará do dia de amanhã e tudo chegará no tempo exato. Mas e o dia de hoje?” * É agora que quero dividir maçãs, achar o fim do arco-íris, pisar sobre estrelas e acordar serena. É para já que preciso contar as descobertas, alisar seu peito, preparar uma massa e cantar as velhas canções. Não posso esperar. Tenho a mesa posta, toalhas brancas, ombros moles e uma alma que só saber viver presentes. Sem esperas, sem amarras, sem receios, sem cobertas, sem idéias, sem voz, sem sentido. Com uma única certeza.

É preciso que você venha. É preciso que você venha nesse exato instante. Agora que não há conceitos e os nomes ainda são desprezíveis. Venha e escreva uma longa e cafona novela mexicana, com laquê nas expressões. Rime prazer com agonia, grafite paredes com os clichês dos amantes, acorde dentro de mim, lamba pernas com os seus cabelos lisos e reais. É tudo um vazio cheio de portas, com caminhos confusos e simples que levam ao único lugar possível a quem ousa chamar de amor o que não deveria ter nome: o desconhecido. Seja forte. Porque é preciso coragem para se arriscar num futuro incerto, cuja estrada embriaga até mesmo quem tem passos firmes e saber fazer o quatro. Esqueça os on-the-rocks. Seja cowboy, macho, gente, animal, mistério, doçura, pegação. Abandone os antes. Meu nome é já e nossos pés paralelos se tocam no finito. Chame do que quiser. Mas venha.

Preciso dizer-lhe o que você talvez ainda não saiba: existem lobisomens que comem flores. Você sabia que existem lobisomens que comem flores? Você sabia disso, meubem? Daqui quase posso vê-lo, no meio de um grande corredor colorido. Buganvílias, rosas, cravos, azaléias, orquídeas, gérberas, gerânios. Não sei suas preferidas, mas percebo uma sutileza no ar. Médico e monstro, dor e riso, o impossível e o real. Opostos quase palpáveis, fechando metades, descobrindo o mundo, abrindo clareiras no matagal das emoções. Você sabia que o impossível mora no nosso quintal? Você sabia que os galos cantam, todos os dias, para que a coragem desperte e Deus renove sua misericórida sobre todos os que pecam. Qual é seu maior pecado, meubem?

Hoje sou luxúria. Espero mãos pesadas, ópio na veia, sol de giz riscado no chão. Quero dividir meus erros, arranhar minha loucura, arrastar cabelos aos seus pés. Não cale. Entregue, apele. Posso descobrir mazelas escondidas e transformar seu corpo em juízo final. Marque o x e verá uma fila inesgotável de possibilidades adormecidas estendidas no seu varal. Seja. Porque estamos tão perto e tão longe e claros e cheios e inertes e ofegantes. Sou o chá, o veneno, a cura, a espera, a certeza, o presente, a solução. Reconheço enganos. E o meu medo é do seu medo de ter medo. Porque não quero amizade, paixão, carinho, admiração, respeito, ternura, tesão. Quero o que é e não tem muro. Escolhi o amor da prateleira e aprendi a só entender o sim. Se o seu modo é não, vá embora. Não olhe para trás. Renego estátuas de sal e abomino divisões. Se é para pular, que seja já. Porque hoje é hoje; e amanhã, amanhã ninguém sabe.

- Caio Fernando Abreu; "Ovelhas Negras".

terça-feira, 25 de maio de 2010

loucura.

'Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco seria uma outra forma de loucura. Necessariamente porque o dualismo existencial torna sua situação impossível, um dilema torturante. Louco porque tudo o que o homem faz em seu mundo simbólico é procurar negar e superar sua sorte grotesca. Literalmente entrega-se a um esquecimento cego através de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão distantes da realidade de sua condição que são formas de loucura — loucura assumida, loucura compartilhada, loucura disfarçada e dignificada, mas de qualquer maneira loucura.'

- Caio F. Abreu, O dia em que Urano entrou em Escorpião.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

além.

isso de querer

ser

exatamente aquilo que

a gente é

ainda vai nos levar

além


(leminski)

me queira assim.

… que você me queira assim, imperfeita e cheia de confusões. Que saiba os momentos em que eu preciso de uma mão passando entre os fios de cabelo. Que perceba que às vezes tudo o que eu preciso é do silêncio e do barulho da nossa respiração. Que veja que eu me esforço de um jeito nem sempre certo. Que veja lá na frente uma estrada, inteiramente nossa, cheia de opções e curvas. E que aceite que buracos sempre terão. O que eu peço é que você me veja de verdade. Que você olhe dentro de mim e veja o que eu sou, com meus momentos de sabedoria, esperteza, alienação e ingenuidade, porque eu nunca vou saber tudo. E entenda que de vez em quando faço questão de não saber nada. Que você note que eu faço o melhor de mim e vezenquando desconheço o que eu realmente posso ser. Peço que você tenha paciência grátis e um colo que não faça feriadão. Que me ensine mais, a cada dia, o meu. E o seu.

- autor desconhecido.

coisas simples.

"- […] A vida é uma questão de nervos, de fibras, de células, construídas aos pouquinhos, em que o pensamento se esconde e a paixão sonha. Talvez você pense que seja seguro, que seja forte. Mas uma tonalidade de cor diferente, casual, num aposente, no céu de certa manhã, um perfume especial de que você tanto gostou, porventura, e que evoca lembranças sutis, um verso de um poema esquecido, com que você depara novamente, a cadência de uma peça musical que você que você já não mais tocava… Eu digo, Dorian, é de coisas como essas que nossas vidas dependem. […]"

- O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde

ficarei alegre.

“E todos os dias ficarei tão alegre que incomodarei os outros, o que pouco me importa, já que eu tantas vezes sou incomodada pela alegria superficial e digestiva dos outros.”

(Clarice Lispector)

domingo, 9 de maio de 2010

eu não consigo entender.

'É esse gelo por dentro que eu não consigo entender. Você se doou tanto quando eu não pedia, e no momento em que pela primeira vez pedi, você negou, você fugiu. É esse seu bloqueio de aço encouraçando o silêncio, eu não consigo entender.'

— Caio 3D - O essencial da década de 1970 - Caio Fernando Abreu

um cego vê mais que um homem comum.

'Encarou-o tenso, colocando no olhar o desafio: eu te vejo mais fundo do que me vê, porque eu te invento nesse olhar, porque você se torna meu invento, porque depois de olhar muito dentro eu prescindo da imagem e o meu olhar repleto basta, como se eu fosse cego, mas tivesse guardado todas as imagens: um cego vê mais que um homem comum porque não precisa olhar para fora de si, porque o que ele deseja ver está completamente dentro e é inteiramente seu.'
— A chave e a porta - Caio Fernando Abreu

sábado, 8 de maio de 2010

ela é mais..

"Ela é mais que um sorriso tímido de canto de boca, dos que você sabe que ela soube o que você quis dizer. Ela fala com o coração e sabe que o amor, não é qualquer um que consegue ter. Ela é a sensibilidade de alguém que não entende o que veio fazer nessa vida, mas vive.Ela tem muita dúvida como todos têm. Mas nem todos sabem a beleza de saber lidar com a tristeza. Ela sabe. Ela ouve a música que seu coração pede e modela seu ritmo ao seu estado de espírito. Ela dança a coreografia de seus sentimentos, e todos podem ver. Ela é um pote de cristal, tão tranparente quanto, tão rico quanto. Mas um cristal que não sabe seu real valor, um achado no meio de tantos outros pobres potes que são apenas de vidro. Estes se quebram e são varridos como um objeto qualquer. Mas ela não, se ela quebra, é a tristeza de um cristal que se foi. E todos sentem. Por um instante estive com esse cristal bem perto. Hoje sei a falta que ele faz, e embora alguns digam "tanto faz", eu digo que te amo."

(Mika Pedrosa)

sexta-feira, 30 de abril de 2010

te amo..

Te amo
Te amo de una manera inexplicable.
De una forma inconfesable.
De un modo contradictorio.
Te amo
Con mis estados de ánimo que son muchos,
y cambian de humor continuamente.
Por lo que ya sabes,
El tiempo.
La vida.
La muerte.

Te amo
con el mundo que no entiendo.
Con la gente que no comprende.
Con la ambivalencia de mi alma.
Con la incoherencia de mis actos,
Con la fatalidad del destino.
Con la conspiración del deseo.
Con la ambigüedad de los hechos.
Aún cuando te digo que no te amo, te amo.
Hasta cuando te engaño, no te engaño.
En el fondo, llevo a cabo un plan,
para amarte... mejor.

Te amo.
Sin reflexionar, inconscientemente,
irresponsablemente,
espontáneamente,
involuntariamente,
por instinto,
por impulso,
irracionalmente.
En efecto no tengo argumentos lógicos,
ni siquiera improvisados
para fundamentar este amor que siento por ti,
que surgió misteriosamente de la nada,
que no ha resuelto mágicamente nada,
y que milagrosamente, de a poco, con poco y nada
ha mejorado lo peor de mi.

Te amo.
Te amo con un cuerpo que no piensa,
con un corazón que no razona,
con una cabeza que no coordina.
Te amo
incomprensiblemente.
Sin preguntarme, por qué te amo.
Sin importarme por qué te amo.
Sin cuestionarme por qué te amo.
Te amo
sencillamente porque te amo.
Yo mismo no se por qué Te Amo...

Pablo Neruda

quarta-feira, 28 de abril de 2010

você.

And I want to play hide-and-seek and give you my clothes and tell you I like your shoes and sit on the steps while you take a bath and massage your neck and kiss your feet and hold your hand and go for a meal and not mind when you eat my food and meet you at Rudy's and talk about the day and type your letters and carry your boxes and laugh at your paranoia and give you tapes you don't listen to and watch great films and watch terrible films and complain about the radio and take pictures of you when you're sleeping and get up to fetch you coffee and bagels and Danish and go to Florent and drink coffee at midnight and have you steal my cigarettes and never be able to find a match and tell you about the the programme I saw the night before and take you to the eye hospital and not laugh at your jokes and want you in the morning but let you sleep for a while and kiss your back and stroke your skin and tell you how much I love your hair your eyes your lips your neck your breasts your ass..

and sit on the steps smoking till your neighbors come home and sit on the steps smoking till you come home and worry when you're late and be amazed when you're early and give you sunflowers and go to your party and dance till I'm black and be sorry when I'm wrong and happy when you forgive me and look at your photos and wish I'd known you forever and hear your voice in my ear and feel your skin on my skin and get scared when you're angry and tell you you're gorgeous and hug you when you're anxious and hold you when you're hurt and want you when I smell you and offend you when I touch you and whimper when I'm next to you and whimper when I'm not and dribble on your breast and smother you in the night and get cold when you take the blanket and hot when you don't and melt when you smile and dissolve when you laugh and not understand why you think I'm rejecting you when I'm not rejecting you and wonder how you could think I'd ever reject you and wonder who you are but accept you anyway and tell you about the tree angel enchanted forest boy who flew across the ocean because he loved you and write poems for you and wonder why you don't believe me and have a feeling so deep I can't find words for it and want to buy you a kitten I'd get jealous of because it would get more attention than me and keep you in bed when you have to go and cry like a baby when you finally do and get rid of the roaches and buy you presents you don't want and take them away again and ask you to marry me and you say no again but keep on asking because though you think I don't mean it I do always have from the first time I asked you and wander the city thinking it's empty without you and want want you want and think I'm losing myself but know I'm safe with you and tell you the worst of me and try to give you the best of me because you don't deserve any less and answer your questions when I'd rather not and tell you the truth when I really dont' want to and try to be honest because I know you prefer it and think it's all over but hang on in for just ten more minutes before you throw me out of your life and forget who I am and try to get closer to you because it's a beautiful learning to know you and well worth the effort and speak German to you badly and Hebrew to you worse and make love with you at three in the morning and somehow somehow somehow communicate some of the overwhelming undying overpowering unconditional all-encompassing heart-enriching mind-expanding on-going never-ending love I have for you.


Sarah Kane, in Crave

terça-feira, 27 de abril de 2010

eu aprendi.

'O sorriso que eu levo hoje apaga todos os outros rastros.
Eu aprendi, aos trancos,
que ser feliz não dói.'

(Tati Bernardi)

domingo, 25 de abril de 2010

escrevo porque..

"Por que escrevo é um negócio complicado... Eu tenho a impressão de que a gente escreve por dois motivos. Ou por excesso de ser - é o tipo do escritor transbordante, como a maioria dos escritores brasileiros; é uma atitude completamente romântica - ou por falta de ser. Eu sinto que me falta alguma coisa. Então, escrever é uma maneira que eu tenho de me completar. Sou como aquele sujeito que não tem perna e usa uma perna de pau, uma muleta. A poesia preenche um vazio existencial. Às vezes, eu escrevo porque quero dizer determinada coisa que eu acho que não foi dita; às vezes, porque me interessa que conheçam meu ponto de vista. Às vezes, escrevo também por prazer."

(João Cabral de Melo Neto, in: Giovanni Ricciardi em Auto-Retratos)

navegamos no mesmo barco furado.

"Não espero nenhum olhar, não espero nenhum gesto, não espero nenhuma cantiga de ninar. Por isso estou vivo. Pela minha absoluta desesperança, meu coração bate ainda mais forte. Quando não se tem mais nada a perder, só se tem a ganhar. Quando se pára de pedir, a gente está pronto para começar a receber. O futuro é um abismo escuro, mas pouco importa onde terminará a minha queda. De qualquer forma, um dia seremos poeira. Quem é você? Quem sou eu? Sei apenas que navegamos no mesmo barco furado, e nosso porto é desconhecido. Você tem seus jeitos de tentar. Eu tenho os meus."

(Caio F. Abreu)

sexta-feira, 23 de abril de 2010

amor bastante.

quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

(Paulo Leminski)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

bastava.

“Na infância..
Bastava sol lá fora e o resto se resolvia.”

Fabrício Carpinejar

meu mal sou eu mesmo.

“Acho que meu mal sou eu mesmo, esses círculos concêntricos envolvendo o centro do que devo ser. Mas só poderei me aproximar dos outros depois de começar a desvendar a mim mesmo. Antes de estender os braços, preciso saber o que há dentro desses braços, porque não quero dar somente o vazio. Também não quero me buscar nos outros, me amoldar ao que eles pensam, e no fim não saber distinguir o pensar deles do meu.”

Caio F.

irremediável.

“Sobretudo no momento em que a tocara, compreendera: o que se seguisse entre eles seria irremediável. Porque quando a abraçara, sentira-a viver subitamente em seus braços como água correndo. E vendo-a tão viva, entendera esmagado e secretamente contente que se ela o quisesse, ele nada poderia fazer… No momento em que finalmente a beijara sentira-se ele próprio de repente livre, perdoado além do que ele sabia de si mesmo, perdoado no que estava sob tudo o que ele era… Daí em diante não havia escolha.”

Clarice Lispector

quarta-feira, 21 de abril de 2010

tristeza não mata.

"É preciso ter tristeza. Tristeza não é ruim. Quase todo mundo só quer escutar musiquinhas alegres, ir dançar em lugares barulhentos, ficar falando o tempo inteiro. Porque eles tem medo da tristeza. Mas não é a tristeza que mata."

Fernanda Young

sou vários caminhos.

"Tenho de ter paciência para não me perder dentro de mim: vivo me perdendo de vista.
Preciso de paciência porque sou vários caminhos, inclusive o fatal beco sem saída."

Clarice Lispector

sofrer dói, mas faz um bem danado depois que passa.

"Mas tudo está bem agora, eu digo: agora. Houve uma mudança de planos e eu me sinto incrivelmente leve e feliz. Descobri tantas coisas. Tantas, Tantas. Existe tanta coisa mais importante nessa vida que sofrer por amor. Que viver um amor. Tantos amigos. Tantos lugares. Tantas frases e livros e sentidos. Tantas pessoas novas. Indo. Vindo. Tenho só um mundo pela frente. E olhe pra ele. Olhe o mundo! É tão pequeno diante de tudo o que sinto. Sofrer dói. Dói e não é pouco. Mas faz um bem danado depois que passa. Descobri, ou melhor, aceitei: eu nunca vou esquecer o amor da minha vida. Nunca. Mas agora, com sua licença. Não dá mais para ocupar o mesmo espaço. Meu tempo não se mede em relógios. E a vida lá fora, me chama!"

Fernanda Mello

segunda-feira, 12 de abril de 2010

cabe tudo o que há em mim.

"Se meus olhos fossem câmeras cinematográficas eu não veria chuvas nem estrelas nem lua, teria que construir chuvas, inventar luas, arquitetar estrelas. Mas meus olhos são feitos de retinas, não de lentes, e neles cabem todas as chuvas estrelas lua que vejo todos os dias todas as noites."

(Caio F. Abreu)

terça-feira, 6 de abril de 2010

cansaço na alma do meu coração.

"Há um grande cansaço na alma do meu coração. Entristece-me quem eu nunca fui, e não sei que espécie de saudades é a lembrança que tenho dele. Caí contra as esperanças e as certezas, com os poentes todos."

(Fernando Pessoa - sob o heterônimo Bernardo Soares, in: "Livro do Desassossego").

puro maya, ilusão.

“Tua carta me pareceu um tanto amarga. Há uma frase tipo “meu amor parece ter ofendido profundamente às pessoas que amei”, algo assim, com a qual absolutamente não concordo. Não se trata de ofensa, não se trata de aceitação, nem de nada que não seja apenas: as coisas são assim. Os magnetismos das pessoas cruzam-se e descruzam-se, acho, meio que aleatoriamente, por algum tempo, por nenhum tempo, por muito tempo. É mais complexo que isso, mas anyway: não deve doer. E não deve porque no fundo não tem importância, como todo o resto. É puro maya, ilusão”.

(Caio F. Abreu)

quarta-feira, 31 de março de 2010

virginianos.

Você é de Virgem, não? é o signo regido por Mercúrio, o planeta da inteligência, as pessoas de Virgem sempre conseguem o que querem embora no começo pareça tudo muito difícil...'

Caio F. Abreu

terça-feira, 30 de março de 2010

bolha opaca suspensa.

'E para sempre então, agora, me sinto uma bolha opaca de sabão, suspensa ali no centro da sala do apartamento, à espera de que entre um vento súbito pela janela aberta para levá-la dali,...'


Caio F. Abreu

impulsividade.

"Estou atrás do que fica atrás do pensamento.
Inútil querer me classificar:
eu simplesmente escapulo.
Gênero não me pega mais.
Além do mais, a vida é curta demais para eu ler
todo o grosso dicionário a fim de por acaso
descobrir a palavra salvadora.
Entender é sempre limitado.
As coisas não precisam mais fazer sentido.
Não quero ter a terrível limitação de quem vive
apenas do que é possível fazer sentido.
Eu não: quero é uma verdade inventada.
Porque no fundo a gente está querendo
desabrochar de um modo ou de outro.
“Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma idéia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade.
Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. [...] Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei.”
" Clarice Lispector"

vazio por dentro.

'Me ocorre, essa é outra coisa que poderia dizer de mim mesmo, quisesse ser preciso, tenho um quarto vazio por dentro.'

Caio F. Abreu

nada mais.

"Deitada no ombro dele, ela via seu rosto muito próximo. Esse era o sonho, nada mais."

Caio F. Abreu

é você quem eu vejo.

"Porque quando fecho os olhos, é você quem eu vejo;aos lados, em cima, embaixo, por fora e por dentro de mim. Dilacerando felicidades de mentira, desconstruindo tudo o que planejei, abrindo todas as janelas para um mundo deserto. É você quem sorri, morde o lábio, fala grosso, conta histórias, me tira do sério, faz ares de palhaço, pinta segredos, ilumina o corredor por onde passo todos os dias. É agora que quero dividir maças, achar o fim do arco-íris, pisar sobre estrelas e acordar serena. É para já que preciso contar as descobertas, alisar seu peito,preparar uma massa, sentir seus cílios.“Claro, o dia de amanhã cuidará do dia de amanhã e tudo chegará no tempo exato. Mas e o dia de hoje?” Não quero saber de medo, paciência, tempo que vai chegar. Não negue, apareça. Seja forte. Porque é preciso coragem para se arriscar num futuro incerto. Não posso esperar. Tenho tudo pronto dentro de mim e uma almaque só sabe viver presentes. Sem esperas, sem amarras, sem receios, sem cobertas, sem sentido, sem passados. É preciso que você venha nesse exato momento. Abandone os antes. Chame do que quiser. Mas venha. Quero dividir meus erros, loucuras, beijos, chocolates...Apague minhas interrogações. Por que estamos tão perto e tão longe? Quero acabar com as leis da física, dois corpos ocuparem o mesmo lugar! Não nego. Tenho um grande medo de ser sozinha. Não sou pedaço. Mas não me basto."


Caio F. Abreu

meu céu.

"E fico sentindo falta do teu jeito lento de chegar, pisando em nuvens, sempre azul."

Caio F. Abreu

ainda mais claras agora.

'...dizer a ele que voltariam as manhãs, ainda mais claras agora que estávamos juntos'

(Caio F. Abreu)

nunca.

"Pode parecer maluco, mas todas as minhas súplicas para que você desista de mim, é um jeito maluco de pedir que você não desista nunca, pelo amor de Deus. "

Tati Bernardi

nesse exato momento.

'Tenho tudo pronto dentro de mim e uma alma que só sabe viver presentes. Sem esperas, sem amarras, sem receios, sem cobertas, sem sentido, sem passados. É preciso que você venha nesse exato momento.'

(Caio F. Abreu )

agradeço.

'Então eu agradeço, eu tenho medo e espanto e terror e ao mesmo tempo maravilhamento e outras coisas com e sem nome, mas agradeço. Aos deuses dos jardins, aos deuses dos homens, aos deuses do tempo e até aos das ervas daninhas que nos fazem lutar feito tigres feridos fundo no peito, sim, eu agradeço. '

(Caio F. Abreu)

pelo menos isso..

'Oh Deus, eu que já fui muito ferida. Mas quanta gente tenho pelo que agradecer. Só não cito os nomes para não ferir o pudor de quem eu citasse.Tenho recebido olhares que valem por uma reza. E há quem já tenha feito promessa por mim. E eu? Vou tentar rezar agora mesmo, despudoradamente em público. É assim: -Meu Deus - não, é inútil, não consigo. Mas talvez dizer "Meu Deus" já seja uma reza. Há, porém, um pedido que posso fazer e farei agora mesmo: Deus, fazei com que os que eu amo não me sobrevivam, eu não toleraria a ausência. Pelo menos isso eu peço.'

(Clarice Lispector)

tanto.

"É fácil, basta você querer, eu ainda quero tanto."

(Caio F. Abreu)

segunda-feira, 29 de março de 2010

astralmente impossível.

"Não quero nunca me perder de você (...) astralmente impossível."

(Caio F. Abreu)

imperecível.

"O que a memória ama, fica eterno.
Te amo com a memória, imperecível."

Adélia Prado

preciso de menos.

'Eu preciso aprender a ser menos. Menos dramática. Menos intensa. Menos exagerada. Alguém já desejou isso na vida: ser menos? Pois é. Estranho. Mas eu preciso. Nesse minuto, nesse segundo, por favor, me bloqueie o coração, me cale o pensamento, me dê uma droga forte para tranqüilizar a alma. Porque eu preciso. E preciso muito. Eu preciso diminuir o ritmo, abaixar o volume, andar na velocidade permitida, não atropelar quem chega, não tropeçar em mim mesma. Eu preciso respirar. Me aperte o pause, me deixe em stand by, eu não dou conta do meu coração que quer muito. Eu preciso desatar o nó. Eu preciso sentir menos, sonhar menos, amar menos, sofrer menos ainda. Aonde está a placa de PARE bem no meio da minha frase? Confesso: eu não consigo. Nada em mim pára, nada em mim é morno, nada é pouco, não existe sinal vermelho no meu caminho que se abre e me chama. E eu vou... Com o coração na mochila, o lápis borrado, o sorriso e a dúvida, a coragem e o medo, mas vou... Não digo: "estou indo", não digo: "daqui a pouco", nada tem hora a não ser agora. Existe aí algum remedinho para não-sentir? Existe alguma terapia, acupuntura, pedras, cores e aromas para me calar a alma e deixar mudo o pensamento? Quer saber? Existe. Existe e eu preciso. Preciso e não quero.'


Fernanda Mello

domingo, 28 de março de 2010

"Eu te amo – disse ela com ódio ao homem, cujo crime impunível que cometera era o de não querê-la".

(Clarice Lispector)

por que me deste todos esses sonhos muito maiores do que eu?

'Eu não sabia, Senhor, que o mundo era tão vasto e doloroso. E que, desejando a vastidão do mundo, meu coração conheceria também a vastidão da dor. Por que, Senhor meu, permitiste que eu tentasse fugir da minha pequenez? Por que me deste todos esses sonhos muito maiores do que eu?'

(Caio Fernando de Abreu In: Teatro Completo )

sonho.

'Não tenho certeza de nada,
mas a visão das estrelas
me faz sonhar.'

(Vincent Van Gohn)

te desejo..

“Gostaria de te desejar tantas coisas. Mas nada seria suficiente. Então, desejo apenas que você tenha muitos desejos. Desejos grandes.E que eles possam te mover a cada minuto, ao rumo da sua felicidade!”

(Carlos Drummond de Andrade)

tudo cinza..

"Quando Pedro voltou, estava anoitecendo. E foi como se todas as luzes da casa se acendessem ao mesmo tempo.
(…)
Os dias se interrompiam quando ele ia embora. Recomeçavam apenas no mesmo segundo em que tornava a chegar.
Não sei quanto tempo durou. Só comecei a contar os dias a partir daquele dia em que ele não veio mais.
Desde esse dia, perdi meu nome. Perdi o jeito de ser que tivera antes de Pedro, não encontrei outro.
Eu queria que voltasse, não conseguia viver outra vez uma vida assim sem Pedro.
(…)
Parei de ser e de fazer qualquer outra coisa além de esperar que ele voltasse.
Mas Pedro não voltou, eu não voltei.
As luzes da casa nunca mais tornaram a acender com sua chegada."

(Caio F. Abreu in “Onde andará dulce veiga”)

quando o coração ficou inteiramente gelado..

'Teria mesmo chegado ao ponto de dizer nutro? Teria, teria sim, teria dito nutro e relacionamento e rompimento e afeto, teria dito também estima e consideração e mais alto apreço e toda essa merda educada que as pessoas costumam dizer para colorir a indiferença quando o coração ficou inteiramente gelado.'

(Caio F. Abreu in “Os Dragões não Conhecem o paraíso”)

porque doía..

'Devagar, as mãos se tocavam: a tua é tão longa, a tua tão quadrada. Ele não queria entrar noutra história, porque doía. Ela não queria entrar noutra história, porque doía. Ela tinha assumido seu destino de Mulher Totalmente Liberada Porém Profundamente Incompreendida E Aceitava A Solidão Inevitável. Ele estava absolutamente seguro de sua escolha de Homem Independente Que Não Necessita Mais Dessas Bobagens De Amor.'

(Caio F. Abreu in: Mel e Girassóis – Os Dragões não Conhecem o paraíso)

menos dolorosos..

'porque o silêncio e a imobilidade foram dois dos jeitos menos dolorosos que encontrei, naquele tempo, para ocupar meus dias.'

(Caio F. Abreu in “Os Dragões não conhecem o paraíso)

sozinho.

"Eu sofro sendo assim, eu sofro porque, quando você acha mais da metade do mundo babaca, você passa muito tempo sozinho".

(Tati Bernardi)

deixa pintar..

'O que quero dizer é justamente o que estou dizendo. Não estou com pena de mim. Tá tudo bem. Tenho tomado banho, cortado as unhas, escovado os dentes, bebido leite. Meu coração continua batendo - taquicárdico, como sempre. Dá licença, Bob Dylan: it’s all right man, I’m just bleeding. Tá limpo. Sem ironias. Sem engano. Amanhã, depois, acontece de novo, não fecho nada, não fechamos nada, continuamos vivos e atrás da felicidade, a próxima vez vai ser ainda quem sabe mais celestial que desta, mais infernal também, pode ser, deixa pintar.'

(Caio F. Abreu)

nada por conveniência.

" É difícil me iludir, porque não costumo esperar muito de ninguém. Odeio dois beijinhos, aperto de mão, tumulto, calor, gente burra e quem não sabe mentir direito. Não puxo saco de ninguém, detesto que puxem meu saco também. Não faço amizades por conveniência, não sei rir se não estou achando graça, não atendo o telefone se não estou com vontade de conversar. "

(Caio F. Abreu)

é um veneno medonho.

'O amor jamais foi um sonho, o amor, eu bem sei, já provei, é um veneno medonho.
É por isso que se há de entender que o amor não é ócio, e compreender que o amor não é um vício, o amor é sacrifício, o amor é sacerdócio.'

Chico Buarque

tudo é uma questão de...

'Tudo é questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo. '

(Walter Franco)

vazio que ninguém (pre)enche.

"Sinto uma falta absurda de você. Ficou um vazio que ninguém (pre)enche. e penso e repenso e trepenso em você aí. (...) Tá tudo bem assim. Só que me rouba o sentido - entende? - ou a ilusão de sentido que quero ter de vida, e que é essencial para a minha sobrevivência. (...) Me sinto o camelo do poema de Cecília Meireles, mastigando sua imensa solidão".

(27-01-1987, carta de Caio F. para Sérgio Keuchgerian - de Caio Fernando Abreu - Cartas, organizado por Italo Moriconi, p. 147)

é melhor assim.

"Chorar de compreensão meio estúpida pela perdição humana, pela nossa fragmentação, pelas nossas tentativas frequentemente tão inábeis, mas tão sinceras também, de "acertar", de fazer as coisas "do melhor jeito".

(29-10-1984, carta de Caio F. para Maria Adelaide Amaral - de Caio Fernando Abreu - Cartas, organizado por Italo Moriconi, p. 147)

sempre.

"Às vezes sinto falta de mim.
-Eu também, menina.
-Sente falta de si?
-Não, de você. E dói.
[Silêncio]
-Me abraça?
-Sempre."


(Caio Fernando Abreu)

às vezes o amor que se dá pesa..

"Farei o possível para não amar demais as pessoas, sobretudo, por causa das pessoas. Às vezes o amor que se dá pesa, quase como uma responsabilidade na pessoa que o recebe. Eu tenho essa tendência geral para exagerar, e resolvi tentar não exigir dos outros senão o mínimo. É uma forma de paz...
Também é bom porque em geral se pode ajudar muito mais as pessoas quando não se está cega de amor."

(Clarice Lispector)

passa. passará.

'Acendi um incenso.
No rádio, Chico canta Vai passar.
Sim, vai passar. Passa. Passará.'

(Caio F. Abreu)

e revigora..

"Eu sempre acho que cansei de ti, de mim, mas ai vem o amor e revigora."

(Caio F. Abreu)

quarta-feira, 24 de março de 2010

dever de sonhar.

'Eu tenho uma espécie de dever, dever de sonhar, de sonhar sempre, pois sendo mais do que um espetáculo de mim mesmo, eu tenho que ter o melhor espetáculo que posso.
E, assim, me construo a ouro e sedas, em salas supostas, invento palco, cenário para viver o meu sonho entre luzes brandas e músicas invisíveis.'

(Fernando Pessoa)

me ajude..

Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios da tua presença
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude

Faça com que eu seja a tua amante humilde
entrelaçada a ti em êxtase
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala
Faça com que eu tenha a coragem de te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo
Faça com que a solidão não me destrua
Faça com que minha solidão
me sirva de companhia

Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir como se estivesse
plena de tudo
Receba em teus braços o meu pecado de pensar

Clarice Lispector

querer.

Não te quero senão porque te quero
E de querer-te a não querer-te chego
E de esperar-te quando não te espero
Passa meu coração do frio ao fogo.
Te quero só porque a ti te quero,
Te odeio sem fim, e odiando-te rogo,
E a medida de meu amor viageiro
É não ver-te e amar-te como um cego.
Talvez consumirá a luz de janeiro
Seu raio cruel, meu coração inteiro,
Roubando-me a chave do sossego.
Nesta história só eu morro
E morrerei de amor porque te quero,
Porque te quero, amor, a sangue e a fogo.

(Pablo Neruda)

se tu viesses ver-me

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços…

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca… o eco dos teus passos…
O teu riso de fonte… os teus abraços…
Os teus beijos… a tua mão na minha…

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca…
Quando os olhos se me cerram de desejo…
E os meus braços se estendem para ti…

(Florbela Espanca)

amar

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

(Florbela Espanca)

saudades

Saudades! Sim... Talvez... e porque não?...
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?... Ah! como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão!

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais doidamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!

(Florbela Espanca)

inconstância

Procurei o amor que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava.
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer…
Um sol a apagar-se e outro a acender
Nas brumas dos atalhos por onde ando…

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há de partir também… nem eu sei quando…

(Florbela Espanca)

let it be.

'O amor nasce, ou não, espontaneamente, mas nunca por força de imposição. Às vezes, é inútil esforçar-se demais, nada se consegue; outras vezes, nada damos e o amor se rende aos nossos pés. Os sentimentos são sempre uma surpresa. Nunca foram uma caridade mendigada, uma compaixão ou um favor concedido. Quase sempre amamos a quem nos ama mal, e desprezamos quem melhor nos quer. Assim, repito, quando tivermos feito tudo para conseguir um amor, e falhado, resta-nos um só caminho... o de mais nada fazer.'

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 22 de março de 2010

aconteceu, acontece.

"Inconscientemente, parecia querer buscar em autores, filmes e músicas, algum tipo de consolo. Como se alguém precisasse chegar bem perto do sofá, onde estava, colocar um das mãos em seu ombro e dizer que aquilo era normal. Que acontecia também com outras pessoas. E que iria passar."

(Caio F. Abreu)

acho que fiz bem.

"Ou me quer e vem, ou não me quer e não vem. Mas que me diga logo pra que eu possa desocupar o coração. Avisei que não dou mais nenhum sinal de vida. E não darei. Não é mais possível. Não vou me alimentar de ilusões. Prefiro reconhecer com o máximo de tranquilidade possível que estou só do que ficar a mercê de visitas adiadas, encontros transferidos. No plano REAL: que história é essa? No que depende de mim, estou disposto & aberto. Perguntei a ele como se sentia. Que me dissesse. Que eu tomaria o silêncio como um não e ficaria também em silêncio. Acho que fiz bem."

tá tudo bem.

'O que quero dizer é justamente o que estou dizendo. Não estou com pena de mim. Tá tudo bem. Tenho tomado banho, cortado as unhas, escovado os dentes, bebido leite. Meu coração continua batendo - taquicárdico, como sempre. Dá licença, Bob Dylan: it’s all right man, I’m just bleeding. Tá limpo. Sem ironias. Sem engano. Amanhã, depois, acontece de novo, não fecho nada, não fechamos nada, continuamos vivos e atrás da felicidade, a próxima vez vai ser ainda quem sabe mais celestial que desta, mais infernal também, pode ser, deixa pintar. Se tiver aprendido lições (amor é pedagógico?), até aproveito e não faço tanta besteira. Mas acho que amor não é cursinho pré-vestibular. Ninguém encontra seu nome no listão dos aprovados. A gente só fica assim. Parado olhando a medida do Bonfim no pulso esquerdo, lado do coração e pensando, pois é, vejam só, não me valeu.'

(Caio Fernando Abreu)

quinta-feira, 18 de março de 2010

falta.

"Fiquei feliz em poder sentir tua falta, - a falta mostra o quão necessitamos de algo/alguém. É assim o nosso ciclo. Eu te preciso."

(Caio F. Abreu)

terça-feira, 16 de março de 2010

na distância tudo se perde..

"Talvez o mal é que a gente pede amor o tempo todo.
Não se preocupa nunca em dar amor, sem esperar reciprocidade. O meu livro está cheio de dedicatórias. Quando eu escrevo alguma coisa que sai de dentro, lá do fundo, dilacerada, e eu dedico a alguém, eu dou tudo aquilo que eu vivi, que eu senti, pra essa pessoa. Muitas vezes eu não tive nada em troca. Então eu me senti profundamente frustrado, porque eu esperava receber alguma coisa.
A Magliani viveu quase dois anos, única e exclusivamente em função de mim, e eu não percebi isso. Eu só fui perceber que tinha amor quando fiquei longe dela. Assim mesmo, percebi isso vagamente, e voltei também vagamente por causa disso.
Eu perdi, eu tenho consciência absoluta de que eu perdi a oportunidade de amor mais viva e mais profunda que me foi oferecida até hoje. E agora eu não posso fazer mais nada. A gente tá se perdendo todos os dias, pedindo pra pessoas erradas. Mas o negócio é procurar. A gente não se recusar a se entregar a qualquer tipo de amor ou de entrega. Eu nunca vi por que evitar a fossa. Se a fossa veio é por ela tinha que vir. O negócio é viver ela e tentar esgotar ela.
A gente, quando tenta analisar qualquer problema, sempre vai aprofundando, aprofundando, até que chega nesse fundo que é amor sempre.
Eu consigo me expressar muito melhor escrevendo do que falando. Tem um negócio que eu escrevi aqui nesse conto, é um conto chamado "Apenas uma maçã": porque é certo que as pessoas estão sempre crescendo e se modificando, mas estando próximas, uma vai adequando seu crescimento e a sua modificação ao crescimento e à modificação da outra. Mas estando distantes, uma cresce e se modifica num sentido e a outra noutro, completamente diferente, distraídas que ficam da necessidade de continuarem as mesmas uma para a outra.
Uma pessoa quando tá longe vive coisas que não te comunica e tu aqui vive coisas que não comunica a ela. Então vocês vão se distanciando e quando vocês se encontram, vocês vão falar assim: oi, tudo bom e tal, como é que vão as coisas? E aí ele vai te falar por cima de tudo o que ele viveu e, não sei, vai ser uma proximidade distante. Não adianta, no momento que as pessoas se afastam elas estão irremediavelmente perdidas uma pra outra.

A gente sempre procura um amor que dure o mais possível. Procura, procura, talvez tu aches. Pra mim é horrível eu aceitar o fato de que eu tô em disponibilidade afetiva.Esse espaço branco entre dois encontros pode esmagar completamente uma pessoa. Por isso eu acho que a gente se engana, às vezes. Aparece uma pessoa qualquer e então tu vai e inventa uma coisa que na realidade não é. E tu vai vivendo aquilo, porque não agüenta o fato de estar sozinho.
Eu me sinto superfeliz quando encontro uma pessoa tão confusa quanto eu."

In: Caio 3D: o essencial da década de 1970.

imensamente.

"Quis morrer de novo, engoli outra rejeição — mas estou vivo e, sinto muito, vou continuar. Te quero imensamente. Meu coração bate forte."

(Caio F. Abreu)

quarta-feira, 10 de março de 2010

porque dói nela..

"O que faz a lágrima? A lágrima nos universa, nela regressamos ao primeiro início. Aquela gotinha é, em nós, o umbigo do mundo. A lágrima plagia o oceano."

Mia Couto

Ela quer saber o que fazer pra parar a dor. Eu não sei. Sei que a mesma chuva que alaga é a que fertiliza poemas, que desata os choros, que prolonga aquele encontro ou o impede. A mesma chuva que me torna introspectiva e preguiçosa é a que enche minhas pétalas de gotinhas tão perfeitas que nutre uma sede absurda que nasci tendo. E quando faz sol, eu me amplio toda e fico ali, crestando, me retorcendo de prazer ouvindo aquele barulhinho delicado e sutil da umidade se ausentando. E deixo, deixo mesmo que a luz entre e transborde o meu solzinho interno, aquele do meu plexo perto do coração, pra que meu olhar se encha de faisquinhas de vida novamente, de mais fome de tudo.

Quando dói em mim, eu deixo. Deixo doer até a última gotinha de água salgada. Depois ela se vai. A dor não quer outra coisa que não seja exercer sua função: doer. E não é banalizando, embotando as emoções que ela vai deixar de surgir de tempos em tempos. Não sei como dói em você, mas por saber como dói a minha dor eu imagino a sua: de tão abstrata incomoda fisicamente, de tão ignorada ela se humaniza...em nós. No que eram laços.

Deixe doer o que for honesto.Deixe alagar seus olhos de chuva, escorrer pelo seu rosto e traçar caminhos sinuosos ou retas perfeitas como fazem os rios. A dor só quer te lembrar que há vida naquilo que você rejeitou porque compunha um outro extremo do que imaginamos ser a felicidade. Ela quer que você adquira sabedoria experimentando a totalidade...

(Acho que o que mais dói na dor, é porque ela nos deixa tristes).

(Marla de Queiroz)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

é que esse amor a bagunçou inteira..

Para M.C.que me contou uma história tão dolorida.

É que esse amor a bagunçou inteira. Jurou que viria vê-la por três vezes. E a mesa posta, a casa limpa, o vestido bordado. Agora o cheiro das flores que murcharam na chita do vestido lavado. Agora esse café frio, uma das taças intacta, o vinho pela metade. E ela contando sua coleção de esperas, crepúsculos e cartas rabiscadas em guardanapos.

Tentando se reorganizar novamente, rezava pra que tudo voltasse ao seu devido lugar: onde não havia nenhum (falso) entusiasmo e nenhum desses fogos (de artifício). Ela havia chamado de tédio um momento em que , na verdade, seu coração estava em paz.

É que esse amor a bagunçou inteira. E a louça suja de um prato só. E a angústia dura de um parto só. E toda a ternura, como havia lido em Drummond, toda essa ternura inútil, desaproveitada.

Ela só queria que essa dor tão familiar, lhe fosse estranha. E que alguma coisa lhe fizesse companhia, nem que fosse uma voz do outro lado que considerasse a importância que havia para ela de, pelo menos, ouvir um adeus.
E pedia esperançosa: Deus perdoa por eu ter amado desajeitadamente, quem não me amou de jeito algum.

(Marla de Queiroz)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

requintes de delicadeza.

O peito era maior que o céu aberto.
Parávamos. E sabeis
Que o que contenta mais o peito inquieto
É olhar ao redor como quem vê
E silenciar também como quem ama.

(Hilda Hilst)

Não quero mais ser apenas a mulher fatal, aquela que desatina juízos, desarruma os lençóis e transforma a tua vida num redemoinho doce. Quero ser também a tranqüilidade das tardes sonolentas depois do almoço, a fluidez das horas ociosas. Quero ser canto, colo, aconchego, rotina e abrigo de paredes concretas. E uma ponte para o exterior quando a madrugada inquieta...Quero permanecer mais do que estar, sem me preocupar pra que direção o vento levará teus desassossegos.

Mas, deste caminho que te apresento, faço do convite esta certeza de mãos dadas só no início... Pois há algo que mesmo quem teme , ignora: é possível que a estrada seja engolida: pelas águas, pelo cansaço, pelo desperdício das horas, pelos indícios.

Não acredito mais na idéia de amor romântico, por isso, perdoa se te transformei no homem da minha vida, eu deveria ter deixado que você se tornasse por mérito próprio.

E se percebo que não há garantias é porque nunca as tive: nem nas ausências, nem durante a mais intensa companhia. E destes gritos que abrangem um mar inteiro numa breve manhã ou numa tarde sem carícias, me desvencilho. Quero saber que você existe, que já esteve em mim e comigo, mas que é tão livre para ser quanto eu sou. E que esteja e seja matéria ou substância etérea sem me machucar com tua existência sólida. Não quero que nada sobre você me pese nos dias e nem que a saudade me faça acordar com o olhar mais triste que já tive. Quero saber-te pleno e estar feliz por isto, seja lá qual for o motivo. Quero saber-me plena e casada com o amor, mesmo que você já não seja mais o foco.Há muito alvoroço de mar em mim, deixa que eu viva e escreva por esta Natureza.(Nasci explícita para que ningúem me guarde num segredo.)Sou permanência e transitoriedade. Sou reminiscência e novidade.E sei e sinto e vejo mais do que gostaria.

E, se isto me orienta, também me angustia.

Você sabe, às vezes me falta destreza.

E para que não seja sempre assim tão ácido,

Não sejamos nós,

Antes, sejamos laços:

Desses que se atam e desatam com delicadeza.

*

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Marla de Queiroz