quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Tão instáveis, hoje aqui, amanhã ali. Eu sei, também já fui assim. Só que chega um ponto que a gente cansa, que não quer mais saber de aventuras ou de procuras, entende? Acho que é isso que vocês não são capazes de compreender, que a gente, um dia, possa não querer mais do que tem.
Ando digamos que feliz, mas tão só e às vezes um pouco frágil.
(Carta a Luciano Alabarse. SP 18.07.1989)
Apertou o livro entre dedos subitamente frios, depois colocou-o no colo para ajoelhar-se e estender as mãos em direção ao fogo. Eu parado na porta às quatro da manhã. Você indo embora. Eu me perdendo então desamparado entre cinzeiros cheios e garrafas vazias. Você indo embora. Eu indeciso entre beber um pouco mais ou procurar uma beata em plena devastação ou lavar copos bater sofás guardar discos mastigar algum verso adoçando o inevitável amargo despertar para depois deitar partir morrer dormir sonhar quem sabe. Você indo embora. Acordar na manhã seguinte com gosto de corrimão de escada na boca: mais frustração que ressaca, desgosto generalizado que aspirina alguma cura. Tocaria, o telefone? Você indo embora, fotograma repetido. Na montagem, intercalar. Você indo embora você indo embora.
(Caio Fernando Abreu. Saudades de Audrey Hepburn, in: Os Dragões Não Conhecem O Paraíso)

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

‎"eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. sabia só que doía, doía. sem remédio. (...) 'il y a toujours quelque chose d'absent qui me tourmente' (...) para seu próprio bem guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo." (Caio F. Abreu; Existe sempre uma coisa ausente.)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Desde então, tenho uns agostos por dentro, umas febres. Uma tristeza que nada nem ninguém conserta. É assim que se começa a partir?
(Agostos por dentro, in: Pequenas Epifanias)
Não lembrar dos que se foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem vingar-se ou lamuriar-se, e temperar tudo isso com chás, de preferência ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos, conhaques — tudo isso ajuda a atravessar agosto.
(Sugestões para atravessar agosto, in: Pequenas Epifanias)
Chorar de compreensão meio estúpida pela perdição humana, pela nossa fragmentação, pelas nossas tentativas freqüentemente tão inábeis, mas tão sinceras também, de “acertar”, de fazer as coisas “do melhor jeito”;
(Carta a Adelaide Amaral. Sampa, 29 de outubro de 1984)
Estou cada vez mais bossa-nova, espiritualmente sentado num banquinho, com o violão no colo. Deus, como eu quero paz, Zézim.
(Carta a José Márcio Penido. SP, 2 de novembro de 1990.)
Mas o que houve — o tropeço, o solavanco, o esbarrão, a tosse no meio da área lírica —, o que houve foi um pensamento impiedoso e exatamente assim: não faço parte disso.
Não uma dúvida, mas uma certeza. Absoluta.
Sem inveja nem mágoa, revolta ou vontade furiosa de que pudesse ser de outra forma. Secamente, definitivamente, eu não fazia parte daquilo. (…) Por razões que não sei explicar; e nem precisariam tentar ser explicadas porque eram e, pior, continuam sendo completamente indiscutíveis.
Eu não fazia parte, e pronto.
(Caio Fernando Abreu. Agostos por dentro, in: Pequenas Epifanias)
Mas tão, tão modesto. Assim, sa’s, uma PUTA expectativa cercada por todos os lados de desilusão. Que nem calda de chocolate em bolo. Só a casquinha. Já não dói muito. Assisto como a um filme onde só por acaso sou personagem.
(Carta a Jacqueline Cantore. Safe Sampa, 24 de fevereiro de 1988.)
Preciso tomar ar, fingir que sou normal & tenho um profundo interesse pelas pessoas e acontecimentos culturais e todas essas estonteantes possibilidades urbanas.
(Caio Fernando Abreu. Carta a Maria Lídia Magliani)

domingo, 26 de junho de 2011

Cada contato meu com alguma pessoa representava uma perda enorme de energia vital:
eu saía esgotado, confuso, com dor de cabeça e principalmente, com dor por não poder fazer nada pelo desespero alheio. A minha própria miséria aumentava. Foi aí que a solidão deixou de ser involuntária para se transformar em escolha. E foi bom, está sendo bom. Passo o dia lendo, ouvindo música, vendo velhos filmes na televisão,
de vez em quando vou ao cinema ou saio para passear na beira do rio que passa atrás do edifício. Fico lá sentado numa pedra,fumando e pensando nas pessoas que perdi,senão em afeto, pelo menos em proximidade física.

(Caio F, a Vera Antoun)

sábado, 18 de junho de 2011

"Às vezes me lembro dele, sem rancor, sem saudade, sem tristeza. Sem nenhum sentimento especial a não ser a certeza de que, afinal, o tempo passou. Nunca mais o vi, depois que foi embora. Nunca nos escrevemos. Não havia mesmo o que dizer, ou havia? Ah, como não sei responder as minhas próprias perguntas! É possível que, no fundo, sempre restem algumas coisas para serem ditas. É possível também que o afastamento total só aconteça quando não mais restam essas coisas e a gente continua a buscar, a investigar — e principalmente a fingir. Fingir que encontra. Acho que, se tornasse a vê-lo, custaria a reconhecê-lo."



Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Porto Alegre, 14 de junho de 1970.

Hildinha querida,

recebi seu bilhete magoado com as fotografias (lindas: meu
eu-Narciso teve orgasmo). Escrevi há pouco tempo uma longa carta, comentando o
Fluxo-Floema, creio que não recebeste — caso isso tenha acontecido, repito que
gostei muito. A estória do desastre com o Dante me preocupou bastante — não
entendo por que ele não pediu a alguém que passasse um telegrama para cá,
avisando, eu teria ido de ônibus até Caxias. Deve ter sido tristíssimo ficar
simplesmente sozinho numa cidade estranha e, o que é pior, num hospital. Mas o
importante é que ele já se recuperou bem. Diga a ele que os meus pais gostaram
muito dele, até mesmo o meu pai, que é a própria ostra de tão fechado, chegou a
dizer que era o primeiro amigo meu que ele gostava. Minha tia e minha mãe
acharam ele o homem mais bonito que elas já viram; e meu irmãozinho gostou
porque “ele parece o Bufalo Bill”. Elogios aos potes.
Ana Lúcia está aqui, com Medéia. Conversei rapidamente com ela depois do
espetáculo, depois não tive mais tempo de aparecer: ela não está muito bem, meio
de fossa, falando em largar o teatro. Não gostei do espetáculo — foi todo feito em
função de Cleide Yáconis, que é muito boa, embora não excepcional. O coro é
fraquíssimo, os atores homens idem. Soube pela Ana da morte de dona Bedecilda:
outro golpe para você.
Não tenho escrito com mais freqüência porque não tenho tempo: passo a
manhã inteira na faculdade, a noite no curso de arte dramática, à tarde preciso
estudar (estamos em exames), escrever, filmar, fazer montes e montes de coisas.
Ando muito esgotado, durmo só umas cinco horas por noite (logo eu, que se
pudesse dormia umas 20), andei também ruim do coração, meu ritmo cardíaco
estava a mais de 200 pulsações por minuto, precisei fazer um tratamento, não
posso fazer esforço, nem tomar álcool, estou proibido de fumar mas não ligo.
Algumas brigas terríveis em casa: andei fazendo umas experiências com mescalina,
meus pais descobriram, foi aquele forró. Ando deprimido, agressivo, cansado —
perdi uns cinco quilos: pareço um fantasma, tenho insônia e pesadelos horrendos,
idéias negras durante a noite. Hildinha, se você soubesse como ando escuro, como
ando perdido, como me distanciei de mim e das coisas em que acreditava
: tenho
participado de festas louquíssimas, na base da maconha, da nudez, jogo da verdade,
bacanais, surubas. Por favor, queria tanto que me compreendesses. Ando muito
sozinho, nessas festas se reúnem artistas plásticos, atores, atrizes, escritores —
todos jovens, perdidos, desesperados — é uma coisa terrível. Chega a ser
comovente a maneira errada como eles buscam a pureza, como eles tentam se
convencer que os bacanais são a forma mais absoluta de comunicação: finjo o
tempo todo, rio, sou alegre, dispersivo, com aquele brilho superficial e ridículo. E
em cada fim de noite me sinto um lixo. Há tempos estou vivendo uma estória-deamor-
impossível que rebenta a saúde: sei que não dá pé de jeito nenhum e não
consigo me libertar, esquecer — estou completamente fixado nessa pessoa, vivo
todas as horas do dia em função de encontrá-la, à noite. E insuportável. Sei que
estou me autodestruindo, mas isso já não me assusta: penso se não será melhor
afundar, afundar até acabar numa clínica. A juventude de Porto Alegre é uma coisa
terrível: 90% de viciados em tóxicos, todos fugindo de si, das máquinas, do fazeralguma-
coisa. Acho que quem está de fora não pode condenar, condenar
simplesmente é desprezível — é preciso compreender. Existe uma sede de amor
impressionante. Estou sendo muito honesto ao te contar essas coisas, poderia
facilmente escondê-las: sei que me arrisco a te chocar, te ferir, te agredir. Mas eu
nunca quis ser gostado por aquilo que não sou ou aparento ser. Não vejo saída,
Hildinha, sinto que cada vez mais tudo se fecha. Também não adianta pedir ajuda a
ninguém, ninguém pode dar. Talvez isso passe, não sei quando, talvez seja só uma
fase, das mais dificeis que atravessei, mas até passar estarei me desgastando, me
consumindo. Tenho chegado a extremos que não me julgava capaz. E como isso
dói.

A antologia de contos foi lançada (estou mandando um exemplar) com
muita badalação. Está vendendo bem. Vivi a experiência de uma tarde de
autógrafos: me senti tolhido, constrangido, inibido. A imprensa anda me badalando
muito. Mas descobri finalmente como tudo isso quer dizer pouco: o bom no
escrever é o momento da criação, da vibração, da comunicação com o
incognoscível que nos dita as coisas a serem escritas — o resto é lixo. A inveja é
um fato: certas pessoas têm me agredido muito, na faculdade, na rua, geralmente
intelectuais no mau sentido, frustrados e medíocres. Tenho horror desses
rebucetes, rodinhas e frescuras literárias: procuro ficar na minha, sempre. Digo a
todos os repórteres que não me sinto um escritor: que sou só um ser humano
procurando um jeito de viver. E que talvez esse jeito seja escrever, sei lá. Meu livro
está quase pronto, deverá ser lançado em breve. Queria tanto que alguém me
amasse por alguma coisa que eu escrevi.

Não sei mais o que te escrever, estou muito confuso, muito distraído.
Pressinto muito próximo o fim de alguma coisa que não sei especificar qual seja.
Mas não se preocupe muito comigo, não vale a pena. Acho que sou bastante forte
para sair de todas as situações em que entrei, embora tenha sido suficientemente
fraco para entrar. Não faço planos, não sei o que vai acontecer amanhã.
É só,
Hildinha. Um beijo enorme do seu,
Caio Fernando A breu.

PS — Depois de reler — não é tão grave assim. Fui muito dramático. Faça
boas vibrações por mim. Por favor, compreenda tudo. E escreva logo.
Abraços no Dante.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

O que tem de ser, tem muita força. Ninguém precisa se assustar com a distância, os afastamentos que acontecem. Tudo volta! E voltam mais bonitas, mais maduras, voltam quando tem de voltar, voltam quando é pra ser. Acontece que entre o ainda-não-é-hora e nossa-hora-chegou, muita gente se perde. Não se perca, viu?
(Caio F. Abreu)

quinta-feira, 19 de maio de 2011

"Faz frio hoje. O inverno está chegando. Estranho, o inverno sempre me deixa um pouco mais profundo. Me volto para dentro de mim mesmo, tenho a impressão exata de que me pareço com um dos plátanos da praça aí de baixo: hirto, seco, mas guardando alguma coisa por dentro. Quem sabe se essa tristeza que tenho, tão parecida com esse frio envergonhado de não ser frio - quem sabe se não é apenas o derrubar das folhas? Os plátanos também as perdem, uma por uma, e o chão em volta fica todo dourado, até ficarem completamente nus. Depois, em setembro, as folhas começam a voltar. Mais novas, mais verdes. Gosto de plátanos, gosto de folhas. Gosto de tudo que ameaça morrer e de repente se levanta, mais vivo ainda, supreendendo a todos."

(Caio F. Abreu)

terça-feira, 26 de abril de 2011

“Como são breves as despedidas. Quer-se dizer alguma coisa, mas, bem na hora, se esquece o apropriado a dizer e não se diz nada, ou se diz alguma idiotice. Despedir-se é horroroso, para quem parte e para quem fica.”
(do livro JAKOB VON GUNTEN , de Robert Walser, traduzido por Sergio Tellaroli. pág., 120 – companhia das letras.)

segunda-feira, 28 de março de 2011

Inglória é a vida, e inglório o conhecê-la.
Quantos, se pensam, não se reconhecem
Os que se conheceram!
A cada hora se muda não só a hora.
Mas o que se crê nela, e a vida passa.
Entre viver e ser.

Tudo que cessa é morte, e a morte é nossa.
Se é para nós que cessa.
Aquele arbusto.
Fenece e vai com ele.
Parte da minha vida.
Em tudo quanto olhei fiquei em parte.
Com tudo quanto vi, se passa, passo.
Nem distingue a memória.
Do que vi do que fui.

Se recordo quem fui, outrem me vejo.
E o passado é o presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo.
Porém somente em sonho.

E a saudade que me aflige a mente.
Não é de mim nem do passado visto.
Senão de quem habito.
Por trás dos olhos cegos.

Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada.
E quem sou e quem fui.
São sonhos diferentes.

(Poema de Fernando Pessoa)

quarta-feira, 16 de março de 2011

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia...
como
uma pobre lanterna que incendiou!

(Mario Quintana)

terça-feira, 1 de março de 2011

e.e. cummings

“i carry your heart with me”:

i carry your heart with me(i carry it in
my heart)i am never without it(anywhere
i go you go,my dear; and whatever is done
by only me is your doing, my darling)
i fear
no fate(for you are my fate, my sweet)i want
no world(for beautiful you are my world, my true)
and it’s you are whatever a moon has always meant
and whatever a sun will always sing is you

here is the deepest secret nobody knows
(here is the root of the root and the bud of the bud
and the sky of the sky of a tree called life; which grows
higher than the soul can hope or mind can hide)
and this is the wonder that’s keeping the stars apart

i carry your heart(i carry it in my heart)

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

vai passar..

Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está ai, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada "impulso vital". Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te supreenderás pensando algo como "estou contente outra vez". Ou simplesmente "continuo", porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloqüentes como "sempre" ou "nunca". Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicidio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim - nós, não. Contidamente, continuamos. E substituimos expressões fatais como "não resistirei" por outras mais mansas, como "sei que vai passar". Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência.
Claro que no começo não terás sono ou dormirás demais. Fumarás muito, também, e talvez até mesmo te permitas tomar alguns desses comprimidos para disfarçar a dor. Claro que no começo, pouco depois de acordar, olhando à tua volta a paisagem de todo dia, sentirás atravessada não sabes se na garganta ou no peito ou na mente - e não importa - essa coisa que chamarás com cuidado, de "uma ausência". E haverá momentos em que esse osso duro se transformará numa espécie de coroa de arame farpado sobre tua cabeça, em garras, ratoeira e tenazes no teu coração. Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços.
Contarás nos dedos os dias que faltam para que termine o ano, não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talvez enumeres todas as vezes que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos. Serão tantas que desistirás de contar. Então fingirás - aplicadamente, fingirás acreditar que no próximo ano tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam. Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e que um braço amputado jamais se reconstituirá sozinho. Achando graça, pensarás com inveja na largatixa, regenerando sua própria cauda cortada. Mas no espelho cru, os teus olhos já não acham graça.
Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás, no tempo, naquele, e sentirás uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para a casa de teus avós ou teus pais ou tomar um trem para um lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer (e contar, contar, contar) ou escrever uma carta tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa.
Já não é tempo de desesperos. Refreias quase seguro as vontades impossíveis. Depois repetes, muitas vezes, como quem masca, ruminas uma frase escrita faz algum tempo. Qualquer coisa assim:
- ... mastiga a ameixa frouxa. Mastiga , mastiga, mastiga: inventa o gosto insípido na boca seca ...


A personagem está sentada numa escrivaninha. A escrivaninha é muito velha, tem madeira lascada, riscada, manchada de muitas tintas. Falta a gaveta de cima. Pelo vão pode-se ver o que há no interior da segunda gaveta: uma garrafa de Pepsi-Cola vazia e um pedaço de sanduíche de queijo ou/e mortadela. Sobre o tampo, um maço de Hollywood pela metade e muito amassado, uma caixa de fósforos e um pires de cafezinho como cinzeiro. A personagem Lê um livro – de onde não consigo ler o título. A personagem usa tênis brancos (foram brancos), calças de brim azul, desbotado e sujo, um suéter amarelo de lã, esgarçado nos cotovelos. A personagem não olha em volta. Em volta, muitos moças & rapazes com pastas, falando alto (pode-se ouvir, nitidamente, a palavra “dialética”), supõe-se que sejam estudantes. Nas paredes vários cartazes. Num deles, pode-se ler claramente “Cultivar as Almas – ciclo de palestras filosóficas”. Em outro “Você na prévia”. E também: “Pela prática da Liberdade”. Por todos esse detalhes, se supõe que o cenário onde está sentada a personagem seja o diretório do centro acadêmico de alguma faculdade (mas de onde estou não consigo ver claramente). Há uma porta grande de vidro, semi aberta. Lá fora, às vezes chove, às vezes faz sol. Secas e molhadas, as pessoas que entram não param nem falam com a personagem. A personagem está vendendo alguma coisa. De onde estou não consigo ter certeza do que se trata. Mas parecem entradas, dessas para o teatro, cinema, música ou coisa assim. Ninguém pára. Todos falam entre si (pode-se ouvir, nitidamente, a expressão “contradição do sistema”), mas ninguém com a personagem. A personagem pára de ler e olha em volta para ver se está sendo observada. Lentamente. Depois introduz rápida o braço no vão da primeira gaveta (disfarçando com o livro) e, no fundo da segunda, apanha o resto do sanduíche (queijo? Mortadela?). Não vê que eu vejo. Então morde.

Caio Fernando Abreu; Caio 3D: O essencial da década de 80.

da intensidade.

Que a minha intensidade não me impeça de respirar vezenquando, pois suspiro o tempo todo pra encontrar espaço nesse peito que já nem se cabe. Que essas explosões de vida, de beleza e dor me permitam ao menos, por alguns momentos, absorvê-las com tranqüilidade: para que eu consiga dormir sem ter de chorar ou gargalhar até a exaustão, pois sinto falta de apenas lacrimejar ou sorrir sem contrações, descontraída. Que a felicidade não me doa sempre e tanto, a ponto de assustar. Que haja alguma suavidade nos meus olhos diante do cotidiano e que eu não me emocione exageradamente com esta delicadeza. Que eu possa contemplar o mar sem que ele me afogue por completo. Que eu possa olhar o céu imenso e que isso não me aniquile por lucidez extrema. E que quando eu escrever um texto, ao ser publicado, assim, despido de qualquer revisão emocional, dotado apenas da intuição que me foi dada, que encontre a fonte precisa que agasalhe a palavra “palavra”. Que eu não viva só em caixa alta, com esses gritos que arranham silêncios e desgovernam melodias. Que eu saiba dizer sem que isso me machuque demais. Que eu saiba calar sem que isso me provoque uma tagarelice interna inquieta. Que eu possa saber dessa música apenas que ela se comunica com algo em mim, nada mais. Que eu possa morrer de amor e, ainda sim, ser discreta. Que eu possa sentir tristeza sem que ela se aposse de toda a minha alegria. E que, se um dia eu for abandonada pelo amor, não deixe que esse abandono seja para sempre uma companhia.


Marla de Queiroz

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Ao momento presente; Caio Fernando Abreu.

Deixe que ele respire, como uma coisa viva.
E tenha muito cuidado: ele pode quebrar.


Como um bebê ou um cristal: tome-o nas mãos com muito cuidado. Ele pode quebrar, o momento presente.
Escolha um fundo musical adequado — quem sabe, Mozart, se quiser uma ilusão de dignidade. Melhor evitar o rock, o samba-enredo, a rumba ou qualquer outro ritmo agitado: ele pode quebrar, o momento presente.
Como um bebê, então, a quem se troca as fraldas, depois de tomá-lo nas mãos, desembrulhe-o com muito cuidado também. Olhe devagar para ele, parado no canto do quarto ou esquecido sobre a mesa, entre legumes, ou misturado às folhas abertas de algum jornal.
Contemple o momento presente como um parente, um amigo antigo, tão familiar que não há risco algum nessa presença quieta, ali no canto do quarto. Como a uma laranja, redonda, dourada — mas sem fome, contemple o momento presente. Como a cinza de um cigarro que o gesto demorou demais, caída entre as folhas de um jornal aberto em qualquer página, contemple o momento presente.
E deixe o vento soprar sobre ele.
Desligue a música, agora. Seja qual for, desligue. Contemple o momento presente dentro do silêncio mais absoluto. Mesmo fechando todas as janelas, eu sei, é difícil evitar esses ruídos vindos da rua.
Os alarmes de automóveis que disparam de repente, as motos com seus escapamentos abertos, algum avião no céu, ou esses rumores desconhecidos que acontecem às vezes dentro das paredes dos apartamentos, principalmente onde habitam as pessoas solitárias.
Mas não sinta solidão, não sinta nada: você só tem olhos que olham o momento presente, esteja ele — ou você — onde estiver. E não dói, não há nada que provoque dor nesse olhar.
Não há memória, também. Você nunca o viu antes. Tenha a forma que tiver — um bebê, um cristal, um diamante, uma faca, uma pêra, um postal, um ET, uma moça, um patim — ele não se parece a nada que você tenha visto antes. Só está ali, à sua frente, como um punhado de argila à espera de que você o tome nas mãos para dar-lhe uma forma qualquer — um bebê, um cristal, um diamante e assim por diante.
E se você não o fizer, ele se fará por si mesmo, o momento presente. Não chore sobre ele. No máximo um suspiro. Mas que seja discreto, baixinho, quase inaudível. Não o agarre com voracidade — cuidado, ele pode quebrar. Não ria dele, por mais ridículo que pareça. Fique todo concentrado nessa falta absoluta de emoção. Não espere nada dele, nenhuma alegria, nenhum incêndio no coração.
Não espere nada dele, nenhuma alegria, nenhum incêndio no coração. Ele nada lhe dará, o momento presente.
Deixe que ele respire, como uma coisa viva. Respire você também, como essa coisa viva que você é. Contemple-o de frente, igual àquela personagem de Clarice Lispector contemplando o búfalo atrás das grades da jaula do jardim zoológico.
Você pode estender a mão para ele, tentar uma carícia desinteressada. Mas será melhor não fazer gesto algum.
Ele não reagirá, mesmo todo pulsante, ali à sua frente.
Respire, respire. Conte até dez, até vinte talvez. Daqui a pouco ele vai começar a se transformar em outra coisa, o momento presente.
Qualquer coisa inteiramente imprevisível? Você não sabe, eu não sei, ele não sabe: os momentos presentes não têm o controle sobre si mesmos. Se o telefone tocar, atenda. Se a campainha chamar, abra a porta.
Quando estiver desocupado outra vez, procure-o novamente com os olhos. Ele já não estará lá. Haverá outro em seu lugar. E então, como a um bebê ou a um cristal, tome-o nas mãos com muito cuidado. Ele pode quebrar, o momento presente. Experimente então dizer “eu te amo”. Ou qualquer coisa assim, para ninguém.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Breve introdução ao estudo do ciclo seco; Caio Fernando Abreu (sempre ele).

Todo mundo conhece ciclo seco, a maioria até já passou por ele. Alguns mesmo vivem desde sempre dentro dele, achando que isso é vida e eternizando o que, por ser ciclo, deveria também ser transitório. É preciso acreditar que passa, embora quando dentro dele seja difícil e quase impossível acreditar não só nisso, mas em qualquer outra coisa. Não que ciclo seco não tenha fé, o que acontece é que não podendo ver o que não é visível, fica limitado ao real.
Antes de ir em frente, é importante dizer que ciclo seco nada tem a ver com as estações do ano. É coisa de dentro do humano, não de fora, e justamente por isso não tem nenhum método: vem quando não é esperado e vai quando não se suspeita. Ciclo seco não desaba de repente sobre alguém; chega aos poucos, insidioso, lento. Quando se percebe que se instalou, geralmente é tarde demais. Já está ali. É preciso atravessá-lo como a um deserto, quando se está no meio e a água acabou. Por ser limitado ao real, o ciclo seco jamais considera a possibilidade de um oásis ou de uma caravana passando. Secamente, apenas vai em frente.
Porque o real do ciclo seco são ações, não pensamentos nem imaginações. Tanto que, visto de fora, não é visível nem identificável. Não se confunde com “depressão”, quando você deixa de fazer o que devia, ou com «euforia”, quando você faz em excesso o que não devia. Em ciclo seco faz-se exatamente o que se deve ou não, desde escovar os dentes de manhã ou beber um uísque à tardinha, mas sem prazer. Nem desprazer: em ciclo seco apenas se age, sem adjetivos. A propósito, ciclo seco não admite adjetivos — seco é apenas a maneira inexata de chamá-lo para que, dando-lhe um nome, didaticamente se possa falar nele.
E deve-se falar dele? Quero supor entusiástico que sim, mas não tenho certeza se dar nome aos bois terá alguma serventia para o dono dos bois ou sequer para os próprios bois — e essa é uma reflexão típica de ciclo seco. Mas vamos dizer que sim, caso contrário paro de escrever já. E falando-se dele, diga-se ainda que ciclo seco não é bom nem mau, feio ou bonito, inteligente ou burro — nem a Alice, de Woody Allen, nem Bette Davis em algum filme antigo, nem o Homem Elefante nem um dos irmãos Baldwin, nem Gertrude Stein nem Romário —, embora possa dar uma impressão errada a quem o vê de fora, ávido por adjetivar.
Ciclo seco, por exemplo, não se interessa por nada. Pior que não ter o que dizer, ciclo seco não tem o que ouvir, compreende? Fica na mais completa indiferença seja ao terremoto no Japão ou à demissão de Vera Fischer. No plano pessoal, tanto faz ler ou não ler um livro, ir ou não ao cinema — ciclo seco é incapaz de se distrair, de se evadir. Fica voltado para dentro o tempo todo, atento a quê é um mistério, pois que pode um ciclo seco observar de si mesmo além da própria secura, se não há sequer temporais, ventanias, chuvaradas?
Nesse sentido, ciclo seco é forte, porque nada vindo de fora o abala, e imutável, porque de dentro nada vem que o modifique.
E nesse sentido também é antinatural, pois tudo se transforma e ele não, simulando o eterno em sua digamos, i-naba-la-bi-li-dade. E sendo assim, com alívio vou quase concluindo, pode se deduzir que.
Não, não se pode deduzir nada. Só que passa, por ser ciclo, e por ser da natureza dos ciclos passar. Até lá, recomenda-se fazer modestamente o que se tem a fazer com o máximo de disciplina e ordem, sem querer novidades. Chatíssimo bem sei. Mas ciclo seco é assim mesmo.
Todo mundo tem os seus, é preciso paciência. E contemplá-lo distante como se se estivesse fora dele, e fazer de conta que não está ali para que, despeitado, vá-se logo embora e nos deixe em paz? Eu, francamente não sei.Ainda mais francamente, nem sequer sinto muito.

O Estado de S. Paulo, 22/11/995

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Reflexões de um fora da lei do Atrolho; Caio Fernando Abreu.

Se você, como eu, também vive em São Paulo e vem sendo acometido de crises cada vez mais freqüentes de irritação, dor de cabeça, náuseas, palpitações, insônia, chiliques e achaques dos mais diversos, saiba que descobri o motivo. Não por ser gênio, mas por ser vítima. O mal que nos aflige a todos, revelo, chama-se Atrolho. A Cidade de São Paulo é cada vez mais movida e regida por essa entidade invisível, insuportável e onipresente: a Lei do Atrolho.
Essa lei, aprenda, dificulta, até mesmo impede todo e qualquer movimento. Telefones que nunca têm linhas (e você quer falar); caixas de supermercados lixando as unhas enquanto a fila aumenta (e você quer pagar); grupos de executivos e secretárias andando lado a lado na Paulista na hora do almoço (e você quer passar); bilheterias de cinema que jamais têm troco (e você quer sonhar), entendeu? Gente que pára para conversar justamente no trecho mais estreito da calçada; adolescentes com as gigantes mochilas jogando você longe; caixas (ai, caixas!) que te dão o troco com dezenas de moedinhas inúteis; funcionários dos correios que decidem que a sua carta, depois de horas na fila, tem que ir por Sedex — tudo isso e muito mais, muito mais. É puro Atrolho.
Há um bar na esquina de casa (e bar na esquina de casa da gente é cármico, não há como evitá-lo) que é um verdadeiro Ícone Atrolhante. Estreitíssimo, sempre como rádio aos berros, tem banquinhos colados ao balcão onde só caberiam as pernas de um pigmeu, mais uma espécie de plataforma que obriga a gente a um Patético pulinho para subir e — pior — algo como um estribo de metal para apoiar os pés, perfeito para caneladas dilacerantes. Indescritível, não? Nesse bar, logo ao primeiro cafezinho do dia, Você já pode contar com todos os seus impulsos homicidas plenamente despertos e ávidos de sangue.
E as embalagens? Há uma tampa de água mineral, que outro dia Ignácio de Loyola comentou aqui, capaz de estraçalhar dedos, unhas e cutículas. E as calçadas de São Paulo, também Comentadas pelo mesmo Ignácio, um expert em atrolhos? DesVenturadas peruas de saia justa e salto alto! Mas além dos atrolhos, digamos, espaciais, há também os olfativos e sonoros, tão Odiosos quanto. Eflúvios de cebola frita e gordura amanhecida pelas portas e janelas às nove da manhã; office-boys batucando frenéticos em portas de elevadores, você conhece? Britadeiras, trituradoras de concreto, escapamentos abertos. E gritos, muitos gritos. Para quem tem menos de seis neurônios, como nós paulistanos, pode ser fatal.
Pois o atrolho mata. Aos poucos, de ataque de nervos em ataque de nervos mitigados a golpes de lexotan ou passiflorine para não virar serial-killer (grrrr: as caixas!). Reflita: pelo menos 90% do inferno que São Paulo tornou-se talvez seja causado pela Lei do Atrolho, que aqui impera. Precisamos urgentes campanhas, outdoor, cartilhas de esclarecimento. De graça, por instinto de sobrevivência, sugiro: Companheiro, facilite a vida para o ser ao lado! Não atrolhe sua vida, não atrolhe a vida alheia! Contra aids, camisinha; contra Atrolho, consciência!
Consciência — que mel de palavra! —, consciência urbana. A imensa maioria dos atrolhantes não percebe que está sendo manipulada por essa diabólica instituição. É preciso alertar logo a todos, pois a Lei do Atrolho, mãe do stress, traz à tona os mais baixos instintos do mais politicamente correto cidadão. Submetido a ela, em átimos de segundos qualquer um fica possuído por ferozes ímpetos neonazistas.
Quanto a mim, confesso: sou um fora-da-lei do Atrolho. O problema é que, quanto mais você se desatrolha, mais atrolhante torna-se a Cidade. Confuso e exausto, parto para Paris dia 9 para merecida temporada intensiva de desatrolhação psicológica. Da estrada dou notícias.

O Estado de S. Paulo, 6/3/1994

sábado, 8 de janeiro de 2011

“Vamos combinar que muitas vezes não há segredo algum, inimigo algum, interrogação alguma, nenhuma entidade obsessora além da nossa autosabotagem. A gente sabe que esticar a corda costuma encolher o coração, mas a gente estica. A gente sabe que nos trechos de inverno é necessário se agasalhar, mas a gente se expõe à friagem. A gente sabe que não pode mudar ninguém, que só podemos promover mudanças na nossa própria vida, mas a gente age como se esquecesse completamente dessa percepção tão sincera. A gente lembra os lugares de dor mais aguda onde já esteve e como foi difícil sair deles, mas, diante de circunstâncias de cheiro familiar, a gente teima em não aceitar o óbvio, em não se render ao fluxo, em não respeitar o próprio cansaço.

Eu pensava em todas essas armadilhas enquanto caminhava na Lagoa, um dia de céu de cara amarrada, um tiquinho de sol muito lá longe, tudo bem parecido comigo naquela manhã. Eu me perguntei por que quando mais precisamos de nós mesmos, geralmente mais nos faltamos. Que estranha escolha é essa que faz a gente alimentar os abismos quando mais precisa valorizar as próprias asas. Como conseguimos gostar tanto dos outros e tão pouco de nós. Eu me perguntei quando, depois de tanto tempo na escola, eu realmente conseguirei aprender, na prática, que o amor começa em casa. Por que, tantas vezes, quando estou mais perto de mim, mais eu me afasto. Eu me perguntei se viver precisa, de fato, ser tão trabalhoso assim ou se é a gente que complica, e muito. Como conseguimos ser tão vulneráveis, ao mesmo tempo que tão fortes. Somos humanos, é claro, mas ser humano é ser divino também.

Eu não tenho muitas respostas e as que tenho são impermanentes, como os invernos, os dias de céu de cara amarrada, os lugares de dor, os abismos todos, o bom uso das asas, os fios desencapados, as medidas e as desmedidas. Tudo passa, o que queremos e o que não queremos que passe, a tristeza e o alívio coabitam no espaço desta certeza. Eu não tenho muitas respostas. O que eu tenho é fé. A lembrança de que as perguntas mudam. Um modo de acreditar que os tiquinhos de sol possam sorrir o suficiente para desarmar a sisudez nublada de alguns céus. E uma vontade bonita, toda minha, de crescer.”

— Armadilhas - Ana Jácomo

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…
Esta espécie de alma…
Só depois de amanhã…
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã…
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital…
Mas por um edital de amanhã…
Hoje quero dormir, redigirei amanhã…
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…
Antes, não…
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã…
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…
Sim, talvez só depois de amanhã…
O porvir…
Sim, o porvir…

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

enchantagem

de tanto não fazer nada
acabo de ser culpado de tudo

esperanças, cheguei
tarde demais como uma lágrima

de tanto fazer tudo
parecer perfeito
você pode ficar louco
ou para todos os efeitos
suspeito
de ser verbo sem sujeito

pense um pouco
beba bastante
depois me conte direito

que aconteça o contrário
custe o que custar
deseja
quem quer que seja
tem calendário de tristezas
celebrar

tanto evitar o inevitável
in vino veritas
me parece
verdade

o pau na vida
o vinagre
vinho suave

pense e te pareça
senão eu te invento por toda a eternidade

Paulo Leminski